31/01/2010

ALUCINAÇÕES PAULISTANAS (II)

EXPLICAÇÃO
Como informei na primeira parte desta crônica, bastante longa, segue agora a segunda parte. Haverá uma terceira e última.




Consolação e os muros sobreados do cemitério








Foto: Antonio Erivaldo - http://fotolog.terra.com.br


A sombra na calçada do cemitério reconfortava. Já vendo por cima dos muros os altos de alguns túmulos que se sobressaiam pelo luxo e arte, pôde ouvir a conversa de duas senhoras bem idosas, bem vestidas, uma caminhando com dificuldade, apoiando-se numa bengala, falando em orar no túmulo de Antoninho da Rocha Marmo, por graças recebidas.
Que graças? Teriam fixado mais uma placa no túmulo do santinho sem tal galardão oficial lá sepultado?
De Antoninho, lembrava-se de alguns episódios. Ouvira uma história do “menino anjo”. Antoninho da Rocha Marmo, tuberculoso, consolava sua mãe informando que sua morte iminente era desejo de Deus. Para convencê-la – e se conseguisse a proeza, seria a evidência - ordenou que um pintassilgo deixasse uma árvore e pousasse em sua mão. E assim se deu. Ele faleceria da doença aos 12 anos, em 1930. Esse fato, que o emocionara quando criança nos tempos da primeira comunhão, sempre voltava à lembrança agora aguçada pela disposição das duas senhoras em orar nas proximidades do seu túmulo como claramente ouvira dizerem.
Seu túmulo é um dos mais visitados do cemitério, cheio de placas e mensagens fixadas por fiéis agradecidos pelas “graças recebidas”.
Parara. Volta-se e divisa a entrada do cemitério da qual já deixara pra trás. Resolvera entrar e visitar o túmulo de Antoninho da Rocha Marmo. Sobreviveria ao calor, ao suor e ao cansaço.
Ultrapassou o portão principal. Não sabia a direção do túmulo. Não havia ninguém por perto. Não havia quem informasse. Caminhou no sentido do prédio da administração e deu de cara com um funcionário com uniforme de trabalho. Informando-se dobrou a esquerda caminhando pelas alamedas estreitas, atento às obras de arte da maioria dos túmulos, naquele cemitério onde repousa boa parte da elite paulista desde os tempos áureos da riqueza do café. E de outras riquezas.
Nas proximidades, seguindo o caminho indicado, reparara no meio dos túmulos uma mulher vestida com simplicidade, blusa amarela e calça jeans, se bem observara.
Tentou encontrá-la para a localização exata mas parecia ter se esgueirado naqueles recantos, nas reentrâncias dos outros túmulos. Mais alguns passos e ela reapareceu, sem que o advogado atentasse de onde ela saíra, permanecendo estática na frente de um túmulo de granito preto, com figuras angelicais:
- A senhora sabe onde é o túmulo do Antoninho?
- É este aqui onde estou, apontando para um deles, como se esperasse a pergunta.
O advogado se aproximou:
- A senhora recebeu alguma graça, também?
- Graças a Deus, não foi preciso.
Enfeitado com ramalhetes e vasos de flores, a placa que identificava o sepultado era simplória: “19.10.18 a 21.12.30, viveu, sofreu e morreu Amando Jesus”.
Ao se fixar nas velas acesas nuns castiçais fixados numa caixinha retangular de metal, do lado direito, a moça com quem trocara aquelas palavras havia desaparecido. Outra vez? Onde se escondera de novo? Atrás de um túmulo? De que túmulo, ora? Como alguém pode desaparecer assim estando ao seu lado?
Ao deixar o local depois de pensar nos efeitos das graças de todos aqueles que as registraram com uma placa fixada no túmulo de Antoninho, passando por um recanto triangular onde ardiam velas acesas encontrou, desconhecido para ele, o túmulo de Maria Judith de Barros, também com muitas placas de agradecimento por graças recebidas. Quem fora ela? Uma senhora que morrera aos 41 anos de uma doença degenerativa, além de ser maltratada pelo marido.
As duas senhoras que conversavam sobre a intenção de orar no túmulo de Toninho da Rocha Marmo não apareceram ou desapareceram. Tentou lembrar-se de seus rostos, mas não guardara deles a menor impressão, a menor expressão. Lembrava-se apenas da bengala na qual a mais idosa se apoiava.
Mas, ele próprio, o que fora fazer no cemitério da Consolação, no tumulo do menino considerado santo? Apenas vontade? O desejo de alguma graça que não atinara? Onde se escondera a moça de blusa amarela que o recepcionou defronte ao túmulo, onde se esconderam as idosas que ultrapassaram a portaria e não chegaram ao túmulo?
Sem pensar muito nas respostas a essas indagações, voltara-se para a arte dos túmulos, verdadeiros monumentos que dão um toque de harmonia, beleza e sensibilidade ao ambiente de paz.
De volta à Consolação, admirado com o que vira no cemitério, apressou-se em descer a avenida, camisa literalmente molhada de suor, tentando entender a sua visita ao túmulo sem que tivesse qualquer motivação pessoal ou a necessidade de uma graça, “graças a Deus não foi preciso”. Surpreendeu-se com a citação da mesma frase da mulher de blusa amarela que desaparecera ao seu lado que viera como um forte apelo inconsciente de gratidão. Voltara àquelas experiências em plena luz do dia que há pouco tivera. Nem um sonho nem uma alucinação, porque mantivera a consciência, a despeito de todas aquelas imagens e sensações estranhas como uma viagem fantástica mas terrivelmente real e sobretudo assustadora.
Seria sintoma de estresse? Seria a falta de dinheiro? O desgosto com a decisão judicial cujo teor estava na sua pasta? Ou algo pouco mais transcendente, uma advertência de que há algo acima do chão da Paulista e um negativo refletido pelo sol desse mundinho sendo abatido pela devastação crescente?
Essas sensações não lhe eram raras. (continua)

2 comentários:

Anônimo disse...

Milton,

minha mãe se sensibilizava muito com a história desse menino, e sempre que o menino dela ( que você conhece ) ficava doente, pedia a Antoninho que o ajudasse.
Garanto que ela rezou muito por ele ao longo da vida.
Abraço.
Aracéli.

Caio Martins disse...

Milton, não por acaso, chama-se "Rua da Consolação". Belo texto. O ideal é ler antes a primeira parte, e então esta. E ficar na expectativa da próxima.

Forte abraço.