18/03/2012

MEUS TEMPOS DA CALÇA CURTA



Meus caros, sinto aqui no peito que sou tudo aquilo que vivi – e quem não é? indaga minha vã filosofia -, todas as influências, a minha morada em bairros pobres, meus pais, irmãos, amigos e aqueles nem tanto e, principalmente, a influência de minha mãe.
Não há jeito. Agora recostado no meu banco na varanda, naquele silêncio de Águas interrompido pelos latidos dos cachorros vez ou outra – um cachorro late tal qual a minha cadelinha Preta que perdi -, viajando entre as estrelas um tanto ofuscadas pela iluminação pública nas ruas, me pergunto sobre tudo, especialmente essa passagem pelas várias estações da vida parando numas, perdendo outras e, por fim, rememorando nesse silêncio as experiências que amealhei em todas aquelas nas quais desembarquei. Bate o vento já de outono.
Nesta noite retornei aos tempos da escola primária, na qual convivi com professoras excepcionais, aquelas mulheres dedicadas e suas aulas inesquecíveis. E naqueles tempos machistas demais. Por onde andará a dona Olga, professora substituta que no meu último ano do primário nos ensinou o ano todo. Terá já viajado?
Como prêmio pela minha dedicação aos estudos fui presenteado por ela com um livro, “Os Três Mosqueteiros” com dedicatória enaltecendo meus esforços. Infelizmente, tantos anos depois, não consegui mais encontrá-lo.
Eu tinha apenas uma calça comprida. De todos os jeitos, naqueles últimos meses da escola, evitava ir às aulas vestindo calça curta. Afinal, estava me formando.
Chegou a data da formatura e haveria festa na escola.
Poucos dias antes tento convencer minha mãe de que iria receber o diploma vestindo calça comprida:
- Mas, você não tem calça comprida. A que você usa está muito feia. Você irá com aquela calça curta azul marinho que fica muito bem em você.
Protestei o quanto pude, não chorei é claro. Afinal, já me sentia apto a exibir calça comprida bem ajeitada...como chorar?


Não sei bem, mas acho que era o mesmo “uniforme” de gala de minha primeira comunhão, dois anos antes. Já imaginaram calça curta e paletó? (1)
Talvez não fosse. Não sei. Em dois anos deveria ter crescido alguns centímetros.
Na véspera insisti com minha mãe, mas ela respondeu a mesma coisa:
- A calça curta azul marinho fica bem em você.


No dia, manhã meio nublada, não teve jeito. Contrariado, lá fui eu de calça curta, envergonhado, olhando para todos os colegas que usavam calça comprida, não escondendo o meu despeito.
Parecia que todos me olhavam para se certificar da minha roupa de menino. (2)
Tive a impressão que até a professora Olga tivera essa curiosidade. Rosto enrubescido. Pego de calça curta.
Sobrevivi à calça curta naquele dia de festa e, como já escrevi nalgum lugar, do excelente aluno que fui – no 3° ano do primário ganhei um livro da professora por não ter dado nenhuma falta no ano todo – tornei-me a partir do ginasial mau aluno.
Penso nisso, nessas imagens, com leveza e volto a viajar pelas estrelas. Há os instantes das graças. Há que aproveitá-los.


Legendas:


(1) V. minha crônica “Regressão II: Primeira comunhão” de 24.10.2010
(2) Hoje as “bermudas”, calças curtas ou “shortões” com bolsos, dominam o meio informal e esportivo. “Bermudas”, porque popularizadas nas Ilhas de quem emprestaram o nome. As Ilhas Bermudas são também famosas porque compõem um dos vértices do misterioso “Triangulo das Bermudas”.

Um comentário:

Caio Martins disse...

Milton, diverti-me muito com a crônica... tirando particulares, assim ocorreu também comigo, pudesse e teria me metido no buraco mais fundo da paróquia!
Porém, sobrevivemos à provação... E esticamos o ofício de crianças um pouco mais. Excelente texto!
Abraço.