Eu conto como ouvi, uma daquelas
lendas que se dão no sertão que pode ser verdade, ter um fundo de verdade ou
simplesmente não ser verdade – uma mistura de eventos que inspiram um contar,
um poema, uma canção.
Deu-se
naqueles tempos de ar limpo, de mata fechada, naqueles tempos em que se viam
coisas pulando nos mourões, fantasminhas que deixaram de assustar tal como o
fogo fátuo que se deixava ver nos pântanos pela estranha combustão de gazes exalados
por corpos mal sepultos.
Aos entardeceres
eram inspiradores e as noites, sem as
luzes dos sítios, eram imensas de estrelas, a lua brilhava mais e a mata
fechada emitia sua luz própria misturando-se com o luar.
Aquelas luzes
esverdeadas, leves no seu esplendor. Porque não só animais livres por ali
habitavam. Porque havia seres que oravam para divindades desconhecidas.
Por
aquelas paragens não havia naqueles tempos a caça, mas a pesca naqueles lagos
que se comunicavam com os pântanos, nos riachos que cresciam das fontes
límpidas naqueles meios secretos.
A estância
era simples, uns alqueires de terra, lavrada com frutíferas e além da
subsistência, porque frutas e o feijão sempre sobravam eram vendidos na
cidade. Há muito que era assim.
Uns tantos
bois que ajudavam na terra e vacas, o leite garantido, a manteiga garantida
também vendida na sobra e em tudo havia o conforto da pequena casa, a paz
possível, a certeza do dia seguinte.
Um dia
apareceu por lá um touro perdido.
- Ora, de
quem é esse tourinho?
O sertanejo
procura por todo parte o dono do touro e nada.
O animal
muito manso foi ficando e se tornou reprodutor da estância. Até que o dono
aparecesse e vindicasse sua propriedade.
O
estancieiro, homem rude, cabelos esbranquiçados cobertos pelo chapéu marrom
desbotado, rugas profundas do sol-a-sol, mãos ásperas de calos se sentia
incomodado quando se obrigava a vender cabeças.
Não gostava
de encarar seus bois e vacas velhos entregues porque parecia que eles o encaravam temerosos, não estavam destacados para os campos, mas separados num
pequeno espaço e com brutalidade empurrados para o caminhão.
Saía de
perto como se isso aliviasse sua angústia em ver seus animais mansos no caminho
do corte.
Seu filho
mais velho se divertia:
- Lá vai a
vaca velha virar bife. E esses bois capengas...
Tinha ele
instintos maldosos. Nem os cachorros a ele se afeiçoavam porque sujeitos a um
pontapé quando distraídos.
Não
adiantavam as broncas de seu pai, de sua mãe que chorava até pelos seus animais
quando levados, de suas duas irmãs.
Numa dessas
noites chuvosas, o velho estanceiro se foi num sono tranquilo contente porque
chovia.
Com aquele
semblante de riso, não mais acordou.
Enquanto a
família não decidia o que fazer sem o pai, o primogênito passou a cuidar da
estância.
Tratava mal
os animais. Ao abrir a porteira para que os bois fossem para o pasto, dava-lhes
pancadas com uma grossa vara e ao touro aparecido fazia o mesmo, com mais força
e dizia:
- Qualquer
dia te castro seu touro manso. Tu vais para a terra ou te vendo pro caminhão.
E assim por
meses e meses. Sua irmã muito se irritava com esses maus modos do irmão e
sempre que podia, ela mesma abria a porteira acariciando as vacas recém ordenhadas
e falando com os bois e com o touro aparecido.
O moço já
havia decidido que não ficaria na estância. Ouvira dizer que no
estrangeiro havia competições entre vaqueiros montados em cavalos laçando
novilhos ou equilíbrio no touro bravo e coisas assim. Diziam que dava
dinheiro e prêmios. Não tinha certeza disso. Ou se arriscaria nalguma coisa que
não fosse a monotonia da estância, sem futuro para suprir seu temperamento
agressivo.
Acertara que
seus cunhados cuidariam das terras.
Talvez na
última vez em que abriria a porteira, mas violento que nunca em espantar os
animais para o pasto, por último o touro aparecido, estancado a poucos metros.
- Venha logo
seu touro chifrudo e mole. Hoje você vai sentir o quanto dói uma saudade.
O animal fez
um movimento incomum com uma das patas e partiu em direção ao seu algoz. Atingido
em cheio, prensado no mourão, perfurado pelos chifres em ponto vitais no seu peito, a morte fora
instantânea:
- Seu mal..., não concluiu.
De nada
adiantou o desespero de suas irmãs e de sua idosa mãe que gritava entre soluços
de um choro compulsivo:
- Eu disse,
eu disse pra ele.
Os cachorros
sem entender o alvoroço da cena latiam, latiam para o touro, para o ferido
estirado no chão duro da terra batida.
Algum tempo
depois, o touro foi entregue ao caminhão. (*)
Sua presença
se tornara amarga para a família do morto.
FOTOS:
1. Fogo fátuo: Wikepédia;
2. Entardeceres / 'Céu lindo': Milton Pimentel Martins
3. Luz na floresta: tramadasletras.blogspot.com.br
4. Touro: Google
(*) V. Crônica de tema correlato: "Fábula: a vaca e o leão" de 04.07.2010
(*) V. Crônica de tema correlato: "Fábula: a vaca e o leão" de 04.07.2010
4 comentários:
Aqui se faz, aqui se paga...
Dr. Milton: o causo está muito bem contado. E parece que existe uma "lei de retorno" imperando em toda parte. Até nas histórias mais singelas...
Marisa Bueloni
Ótimo causo, parece que aconteceu de verdade.
Abraço do Pedra
www.pedradosertao.blogspot.com
Cara Pedra do Sertão
A história quanto ao ataque do Touro me foi contada como real. O resto é "literatura", Aliás, sou dos que torcem sempre para o touro. Grato pela presença. Sds. MM
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