29/03/2009

POETAS

EXPLICAÇÃO

Há anos, escrevi uma série de crônicas sobre “tipos notáveis” que conheci, que soube da história e alguns inventei a partir de fragmentos de fatos "reais".
Entre os "tipos notáveis", insere-se "O Solitário" que tem muito de delírio e nos seus discursos, a despeito de sua vida incomum, um modo de encontrar inspirações, as respostas que dá não são conclusivas, significando imensa dificuldade para compreender esta existência de nexos, conexos e desconexos.
Também entre os notáveis, o relato em "O deserto e o mar". Esses "tipos" estão publicados aqui.
Os "poetas" estão, também, entre os "tipos notáveis".
São crônicas longas que podem desincentivar a leitura mas afirmo, como já se disse, que não houve tempo de serem mais curtas.


I – Poeta falsificado que rima rosa com prosa.


Vivia-se naqueles tempos mágicos em que não se falava de abominações como pedofilia e outras aberrações humanas de hoje. Não havia preocupação com a devastação ambiental. Os tempos eram mais lúcidos e limpos.

No domingo, as missas eram até obrigatórias. A das 10h40 na matriz mais ainda porque desfilavam garotas perfumadas e encantadoras. E que não fumavam...

E nesses tempos, havia espaço para a boemia. Para se ser boêmio, havia que se ter uma certa indiferença com o dia-a-dia da vida, isto é, não estar muito preocupado com a manhã seguinte, com o emprego (o “trampo”), com o patrão.

Se essas preocupações batessem, já por volta da meia noite, não seria o indivíduo um boêmio, mas um notívago que na manhã do mesmo dia, estaria acordando cedo, bocejando sem parar e, pior, ter que dar conta do batente e ouvir as ordens do patrão.

Pois a convivência com esse tipo de figuras, naqueles tempos em que os poetas de botequim rimavam mais ‘rosa’ com ‘prosa’ e não ‘nexo’ com ‘sexo’, havia um grupo misto de garotos e garotas que frequentava uma pizzaria bem em frente do maior colégio da cidade, do outro lado da avenida e, sentados num banco de cimento nos fundos do salão, punham-se, depois de nacos de pizza devorados, algumas doses de cerveja ou conhaque, a "meditar sobre a vida".

As frases entreouvidas:

- Eu tenho problemas, eu não consigo me controlar, estou doente, não sei bem o que é!

Sem um psicanalista por perto, depressão não se conhecia, o problema jamais era identificado. Algumas das garotas, para se "automedicarem" falavam em estudar psicologia.

Uma delas até chegou a esse extremo. Já madura, sem saber o que fazer com o diploma de psicologia por total inaptidão voltou a estudar, formando-se em direito. Tornou-se mais tarde juíza com distinção e já era cotada para assumir posição no tribunal, numa merecida promoção. Não perdera mesmo nesse nível, a sua meiguice que trazia desde aqueles tempos de colégio. Muitos foram seus pretendentes e apaixonados. Na atualidade, solteira, nas audiências, havia advogados que torciam para que suas ações fossem distribuídas para sua vara de tal ordem a admirarem a virtude da meiguice, encantados com seu modo de explanar as idéias. Rigorosa, o resultado da demanda se adverso, era sempre perdoado e os recursos redigidos de modo respeitoso de tal modo a não ofendê-la nas razões expostas. Mas, sua erudição e independência estavam acima desses flertes. Não sei se casou, eu a perdi de vista.

Entre esse grupo da pizzaria, havia um garoto que revelava os mesmo sintomas.

Tornara-se um jovem alto, magro, cabelos lisos e pretos, mais para branco do que para mulato, à noite sempre de camisa branca, impecável. Pouco se sabia de sua vida privada, de sua família, de sua casa...

Trabalhando como aprendiz operário numa fábrica no Ipiranga, nas proximidades do Museu, abominava o trem “lotado e proletário”, que tomava diariamente e reclamava de tudo, do chefe, do almoço, do trabalho repetitivo, da burrice dos colegas... de tudo.

Já estudante do colegial, engajou-se nessa "turma problemática". Toda noite, bastava beber um pouco e, aos prantos, esbravejava suas emoções incontidas e, depois, encostando a testa na mesa, escondendo-se com os braços, curtia a bebedeira, esperando por algum consolo. Por tudo queria parecer vítima e às vezes era bastante convincente quando reclamava entre lágrimas de sua má sorte.

Dizia-se poeta. Numa dessas noites, depois de uma crise de histeria, escreveu num guardanapo alguns versos com aquelas rimas medíocres, de rosa, com prosa revelando toda sua paixão por um amor não correspondido:

"Meu amor, és para mim uma branca rosa,
Sua imagem doce me inspira em verso e prosa."

Colegas mais matreiros, desconfiados do seu “problema”, nalguns sábados, levavam-no a inferninhos bravos de São Paulo, naquelas zonas próximas da praça da República ou no Teatro de Revista numa travessa da avenida Ipiranga para provocá-lo. Eram aqueles tempos em que as doenças venéreas eram curáveis.

Mas, não havia meio: não se embalava. Embebedava-se, fazia papelão no meio daquelas mulheres ávidas por uns trocados, exibia-se recitando algumas poesias medíocres e ficava a espera de "muletas". Nada funcionava para ele.
Certo dia, um sábado meio ensolarado meio nublado, engajou-se numa excursão a um parque público que tinha como atrações um bosque bem fechado e um lago amplo e bonito tendo, às suas margens, quiosques reservados para churrascos e piqueniques.

Na viagem de ida, no ônibus, por acaso, sentou-se ao lado de uma moça, já não tão moça, mais para "coroa" devidamente desimpedida.

Essa mulher assanhou-se para o seu lado. Não demorou muito para que o clima esquentasse. Logo após o almoço, discretamente foram para o bosque e se encostaram numa árvore iniciando a mútua excitação.

Desceram a roupa de baixo naquela “volúpia incontida”. Teve início o ato sexual, sem medo e sem vergonha, exultante. Mas, fora este interrompido de forma até abrupta e cômica. Um vigia do parque os viu em pleno ato e apitou com todas as forças de seus pulmões. Foi a sorte de ambos, porque permitiu que saíssem correndo da maneira que puderam, ajeitando a roupa pelas trilhas do bosque. O “poeta” aos tropeços na barra da calça mal ajeitada e a mulher recomposta do jeito que pode, fugiu por outra trilha num recanto mais fechado do bosque.

Não foram pegos por pouco. E se fossem seria um grande vexame, um escândalo, teriam muita dor de cabeça, porque naqueles tempos tudo se resolveria na delegacia. E como se explicar aos colegas da excursão, à professora que a organizara?
Passado o susto e o desprazer pelo prazer interrompido, voltaram juntos no ônibus rindo muito e pelo que ele próprio contara, nunca mais se viram. É o que disse...

A partir daquele dia o "poeta beberrão" mudou. Suas choradeiras tornaram-se raras. Apenas doses agudas de conhaque poderiam aguçar sua sensibilidade. Depois abandonou o curso e desapareceu. Sobre ele só ficaram estes versos, redigidos por um boêmio solidário, tão “problemático” quanto, numa noite fria em que a histeria ridícula do beberrão passara dos limites e o álcool falara alto por todos:

”Ah ! poeta falsificado
triste e doido beberrão;
rei da histeria tola
o que pensas da poesia ?
Julgas que diante dos copos ,
da garrafa vazia,
encontraras a musa do amor ?
enganado estás meu caro medíocre !
a musa imaculada que buscas,
aquela que o verdadeiro poeta canta,
não está no brilho d’uma garrafa,
Ilustre beberrão !
Porque a musa doce e bela
a pura e límpida impressão,
É a alma limpa que chama
É o espírito são que revela...
tolo beberrão.”

Aqueles tempos idos que agora voltavam à memória afetavam a sensibilidade. a doçura da juventude, acordes de músicas daqueles tempos ressoavam em meus ouvidos orquestradas no éter.

Agora pisava no chão duro, há muito compelido a enfrentar os desafios, os chamados da vida.


II – Poeta infeliz, um lutador sem vaidades


Fui às lágrimas ao me lembrar de outro poeta, mas este diferente daquele porque tivera uma vida amarga e, na realidade, consumido por ela.

Ele também convivera com esses grupos de jovens “problemáticos”, notívagos e boêmios. A única extravagância é que, um dia, no meio daquela turma, no seu silêncio bebera um pouco mais e se proclamara com um copo nas alturas de “João, o poeta”.

Esse sujeito, um simplório, mulato, fez de tudo para sobreviver: trabalhou num centro de abastecimento carregando caixas de frutas e legumes, foi motorista de táxi e até mesmo ambulante. Mas, a despeito de todas essas atividades duras, ele continuava se qualificando como poeta. A sua humildade tinha um certo encanto: por causa dela, ninguém conseguia ignorá-lo e era sempre bem-vindo.
Sua educação formal não fora além do colegial. Seu pai falecera, vítima de cirrose hepática, quando tinha apenas nove anos. Dissera certa feita que ver o seu pai bêbado quase todo dia, fora dilacerante. Sua mãe, infeliz e batalhadora, operária de uma indústria têxtil, garantiu ao filho esse nível escolar. Mais não pôde.

Nos últimos tempos, tornara-se lavadeira. Cheguei a conhecê-la: apresentava rosto sofrido sulcado por pequenas rugas, os cabelos grisalhos a envelheciam implacavelmente muito além da idade. Seus olhos opacos sem brilho demonstravam cansaço e tristeza. Suas mãos e braços apresentavam feridas e inchaços doloridos, porque dia após dia, enfrentava o tanque, os sabões e o cloro. Por terem, apesar de tudo, algum conforto até há um mês, sua dor maior fora se mudar para uma favela, em condições precárias. Todas as tardes, quando chegava ao seu lar tão desarrumado, seus olhos se enchiam de lágrimas.

O pendor de João pela poesia fora, talvez, uma forma que encontrara para se diferenciar dos demais, se superar nas imensas dificuldades de sua vida suportando ironias e deboches num meio pouco afeito à solidariedade e à compreensão. E ao mirar sua mãe ferida trabalhando sem parar, escondia o rosto com as mãos, como se escondesse sua dor e sua vergonha por nada poder fazer por aquela senhora, sua mãe, que lhe dera tudo o que pôde dar.
Quem se proporia, naquele meio, a dar um apoio? Naquele meio em que o dinheiro do pai falava mais alto, dava prestígio? Naqueles tempos em que se tornava rei quem possuísse um “fusca sedan”?

Naquela noite em que João se proclamara poeta, um desses sujeitos bem de vida, com forte dose de álcool no sangue, no fundo da pizzaria, com aquela voz mole de embriagado, equilibrou-se como pôde e gritou:

- Ô João bobo, o poeta de ninguém, o negrinho sem vintém!

João baixou a cabeça por alguns instantes. Levantou-se vagarosamente, deixou o copo vazio com restos de espuma sobre o banco e reagiu violentamente. Um único soco, além de ferir o supercílio do ofensor deixou seu olho roxo. O impacto do soco arremessou para trás o ofensor e, sem equilíbrio sob os efeitos do álcool, sentou-se no banco de cimento batendo a cabeça na parede com aquele ruído muito próprio.

O tumulto foi geral. Alguns davam vivas, outros erguiam o braço do João pelo nocaute obtido e todos cantaram num ritmo alucinante,com vivas, “o poeta beberrão”.

Sendo a "vítima" quem era, João foi assunto por semanas, não pela sua poesia desconhecida, mas pelo soco merecido dado num cara prepotente que por vários dias ostentara o curativo e o olho roxo.

Anos depois, num dia frio, eu o encontro numa esquina abrigando-se da garoa:

- Como vai, João, há quanto tempo! Eu estudei com você, lembra-se. O que você tem feito?

Ele esboçou uma resposta qualquer, balbuciou monossílabos incompreensíveis. Não parecia bem, estava abatido, cabisbaixo. Sua aparência era pior, porque vestia roupa surrada.

Disse apenas:

- Minha mãe morreu no sábado.

Em silêncio, tentando esconder a emoção pela perda daquela que tanto lhe fizera, que tanto lutara, abriu uma velha pasta de mão retirou um livro (“A Maça no Escuro“ de Clarice Lispector) e do meio dele puxou um envelope desgastado:

- Olha algumas de minhas poesias, até agora não serviram para nada. Nunca mostrei a ninguém. Guarde-as para mim.

- João, alguma vez na vida você tentou um concurso literário, tentou publicá-las perguntei.

Ele me encarou surpreso, pensando que fosse mais um deboche. Percebendo que a pergunta fora séria, seus olhos brilharam, esboçou um sorriso e calou-se.

De repente, saiu pela garoa forte, correndo. Voltou-se e fez um aceno.

Uns oito anos depois, soube que João falecera havia uns três anos de "doença grave" nos pulmões. Para minha surpresa, o que me fez pensar por vários dias, toda a conta do tratamento hospitalar tardio e do enterro de João, fora paga por aquele sujeito bem de vida, vítima de seu soco, agora um poderoso empresário, herdeiro da empresa de seu pai.

Sua empresa fazia doações ao hospital e mantinha convênio para atendimento de seus empregados. Numa tarde, o empresário saindo do hospital com o diretor clínico reconheceu sentado, cabisbaixo, João, “o poeta.”

Parou na porta, certificou-se de quem se tratava, voltou-se e discretamente apontou para João:

- Doutor, está vendo aquele mulato branquinho ali? Veja o que está acontecendo. Dê-lhe todo o carinho e tratamento. Depois falaremos de custo, se houver.

Soube dias depois de sua grave doença irreversível e, logo depois, de sua morte, como se a ela se entregasse tantas as amarguras que enfrentara. Emocionou-se e redimiu-se com o passado de deboches ele que era mal visto até entre os “problemáticos”. Discretamente acompanhou o sepultamento de João que pagara como pagara a conta do hospital.

João fora, rigorosamente, um simples. Em sua humildade e no seu gosto pela poesia, estava sua grandeza. Ele poderia ser alvo de deboches, mas nunca ignorado. Era daqueles que incomodam positivamente.

Nem eu levara em conta sua poesia. Ao saber de sua morte, lembrei-me delas. Procuro ardentemente o envelope, encontrando-o finalmente no meio de velhas contas pagas, numa divisória da estante. Ao tocar no envelope, a presença do poeta ao meu lado naquela tarde garoenta fora sentida com intensidade.

Uma poesia que certamente refletiu seu modo de vida, suas angustias é esta:

TUDO É VAIDADE (ECL. 12,8)
Diz o Pregador, melancólico (?), realista (?):
"Vaidade de vaidade, tudo é vaidade"
Desta vida de serviço sem idade.
Da mais humilde à mais soberba criatura
A vaidade impulsiona o mundo, porém
Mas, no fim, nada restará senão o pó, o além...
Extinta, então, a tênue vida, não o Espírito
Falam as Escrituras dum fio de prata rompido
Retornando o Espírito desse ponto partido (?).
Mas, como "tudo quanto sucede é vaidade"
Quando tal soberba sem medida cresce
O Ser humano, no Espírito, enfraquece.

Depois disso, resolvi ler o livro de Clarice Lispector (“A Maçã no escuro”) em cujo exemplar estava o envelope de poesias de João.

Achei-o “meio chato”, embora a história apontasse à exaustão, as contradições, as fraquezas do espírito humano e, especialmente, a angustia da solidão expressada pelo personagem principal que cometera um crime, Martin.

Tempos depois de lido, muitas vezes alguns episódios voltavam à minha memória, sinal de que o livro, a despeito de maçante para mim, o poeta João dissera algo, fora importante.

08/03/2009

RENÚNCIA À CARNE (Animais brutalizados)


Proclamar-se vegetariano num mundo predominantemente carnívoro, isto é, apreciador de carne como alimento não é tarefa fácil. Frequentar restaurantes ou reuniões sociais, onde predominam, de regra, churrascos e salgadinhos à base de carne é sempre complicado porque será necessário escolher pratos sem o componente animal no cardápio ou saber antes qual o conteúdo do salgadinho oferecido. Por isso, esse tipo de sujeito, obrigado a conviver como uma exceção, como minoria nesse mundo "desigual" será, no mínimo, considerado um "chato".

Além de comentários impacientes e eventualmente irônicos, os seus pares, os que se deliciam com um churrasco e com a carne de um modo geral, sentem-se de alguma forma incomodados convivendo com alguém que repudia o delicioso alimento de origem animal.

Eu conheço bem essa situação. Há mais de 40 anos deixei de lado todas as carnes, salvo o peixe em raríssimas ocasiões. Quanto a este, sem nenhuma razão especial, salvo a de não ser "tão diferente", “tão chato”, em reuniões sociais, mas sempre com um peso na consciência, um estágio de nojo.

Nesse tempo todo, somente uma vez vi-me obrigado a comer pequena porção de um bife, nos Estados Unidos, porque atendia a convite de um casal ávido em servir comida brasileira. Tanto pela presunção do anfitrião, como pelo "reencontro" com a carne, percebi que não valera a pena o sacrifício.

As razões que me fizeram deixar de consumir a carne, foram inspiradas em certos ensinamentos esotéricos que consideram os animais uma outra onda de vida que, em vez de serem sacrificados sem piedade, deveriam ser respeitados, ajudados e amados pelos homens. A isso, acrescentem-se as cenas de terror que se sucedem intermináveis nos matadouros onde a crueldade é inimaginável.

Claro que abandonar o hábito da carne num país como o nosso é esperar muito.

Há, sem dúvidas, a proliferação natural de certos animais ressaltando-se porém que há o incentivo e técnicas de procriação e, há,ainda, é verdade, muita fome grassando pelo Brasil e, de resto, em todo o planeta.

Escrevi alhures, porém:

Relatório da ONU denominado de “A grande sombra do gado” esclarece “que os gazes emitidos pelos excrementos e flatulência dos animais, pelo desmatamento para formar pastos e na geração de energia gasta na administração do gado respondem por 18% dos gases-estufa emitidos anualmente no mundo.”


O mais grave é que o Brasil é o maior exportador de carne do planeta e comemora esse êxito pelos milhões de dólares que amealha no negócio.


Mas, além desses prejuízos ambientais, há aspectos ponderáveis a considerar nesses êxitos.(?) 


Os paises importadores da carne brasileira, a compram “limpa” não precisam investir em pastos, rações e em reservas de água para a criação e engorda dessa incontável massa bovina.


Quanto à soja cujo plantio também tem sido causa de imensos desmatamentos é um dos componentes da ração do gado.


Mas, é inequívoco que as pessoas que deixaram de comer carne costumam atestar que se sentem bem assim. Livraram-se de um alimento mais pesado que provém do sofrimento do animal, na hora do abate afetado pelo instinto de preservação violado, pelo grito da violência iminente e do temor.

Os animais tendem a se apegar ao homem, na medida em que forem tratados com carinho e amor. Às vezes, passam a confiar cegamente no seu "irmão maior", a pessoa que deles trata e os alimenta.

Imaginem que tipos de vibrações eclodem no ato da morte do animal domesticado, quando abatido, em especial pelo seu próprio "dono".

Não me parece que em tempo algum a morte violenta esteve tão banalizada tanto na hora do almoço, como na hora do jantar. A televisão sofistica os detalhes. Claro que as guerras passadas ceifaram a vida de milhões de soldados, nessa luta “sem razões”, que não fosse a busca insensata pelo poder, pela dominação de povos e conquista de territórios, aspirações de grandes líderes providos de pequenas almas.

Mas, a despeito da carnificina que se sofistica entre o homo sapiens, não posso me omitir sobre um artigo do “Estado” de abril 2006, assinado pela colunista Regina Schöpke que produziu excelente resenha do livro do filósofo Tom Reagan, denominado “Jaulas Vazias”. O livro que trata da crueldade que se pratica contra os animais, tem no autor um defensor daquilo que “chama de uma consciência animal, ou seja, desse despertar do homem para a sua própria condição ou parte da natureza”, qualificando-se o escritor, então, “porta-voz daqueles que não podem falar e que, em função disso, tornaram-se escravos de nossas necessidades e comodidades."

Refere-se a articulista às freqüentes referências ao gênio Leonardo da Vinci contida no livro, porque, “afinal ele, que desde criança tornou-se vegetariano por não suportar as atrocidades que se cometiam, dizia que o homem transformou seu estômago num túmulo para todos os animais”.

Há um sentido antropofágico se se considerar a evolução da própria espécie humana , porque “Darwin estudou tais emoções (dos animais e sobre isso nos referiremos mais à frente) e, mais do que isso, ele foi o primeiro cientista a desferir um golpe profundo em nossa arrogância ao mostrar que nossa espécie evoluiu de outras inferiores e que somos apenas animais, ainda que muito inteligentes”(!?).

Há anos chegou às minhas mãos um vídeo que não consegui chegar ao final, que mostra a brutalidade que se comete contra os animais, os frangos prestes a serem abatidos e os bois no “corredor da morte”, antes da pancada na cabeça, que ao perceberem o que se passa, aguçando o sentido da sobrevivência, relutam em prosseguir e são empurrados por choques elétricos.

Algumas crueldades, entre outras, relatadas pela revista “Super Interessante” de 09/2003 que todos sabem ou “desconfiam” mas “esquecem” na hora de devorarem nacos do churrasco:

. A vitela é a carne de um bezerro anêmico que passa os seus cinco meses de vida em um cercado minúsculo, impedido de se mover, para a carne ficar macia;

. Bichos com pele valiosa não dão cria em cativeiro e são caçados, permanecendo dias com as patas dilaceradas, presas em armadilhas. A pele costuma ser retirada com o animal ainda vivo;

. Galinhas poedeiras vivem espremidas sob luz quase ininterruptas para que comam e botem sem parar; os bicos são cortados para evitar o canibalismo.

Mais esta, segundo relato extraído do livro resenhado:

“Assim como amontoar cães e gatos em gaiolas, como fazem certos restaurantes da China, para que eles sejam escolhidos pelos fregueses e mortos na hora, só se explica por uma brutalização maior do homem, já que nem os animais que se tornaram nossos mais fiéis companheiros são poupados”.

Com breve pesquisa, será fácil encontrar outros atos de violência contra os animais. É só ter coragem para enfrentar as cenas deprimentes e covardes.

Do ponto de vista do divertimento, as execráveis e covardes touradas que colocam o touro em total desvantagem e, com facas afiadas, vai sendo enfraquecido na sua resistência ao ser seguidamente espetado no dorso. O toureiro é um covarde, um estúpido como estúpida é a platéia que vibra com sua covardia, jamais um herói.

De outra parte, muitos são os estudos que garantem não ser a arcada dentária e mesmo o estômago do homem apropriados para a mastigação e digestão da carne.

Mas, qual o preço da vibração cósmica que produz essa brutalidade sem fim? Valho-me, porque acredito, de trecho de um velho (os conceitos são válidos) e pequeno livro editado pela editora “O Pensamento”, de autoria de Cinira Riedel de Figueiredo, “Sabedoria Esotérica”, esquecido há muitos anos na minha estante:

“A falta de respeito aos reinos inferiores da natureza leva o homem a criar mau karma (carma, lei da causa e efeito), e este é o motivo da Humanidade estar vivendo dias cruéis, repletos de moléstias incuráveis, de guerras e desajustamentos”.

Acima me referi à emoção dos animais. Relato um caso que vivenciei:

A VACA E O BEZERRO SEDENTOS

Há alguns anos, numa chácara em São Pedro (SP), pus-me a regar certas plantas e árvores tenras. O calor era insuportável.

Numa área vizinha, a aproximadamente 50 metros, uma vaca e seu bezerrinho, desde cedo ali confinados, ouvindo o ruído da água, postaram-se perto da cerca e ali permaneceram ela que sempre se mostrara arredia à minha aproximação, desconfiada da possível maldade que poderia praticar o estranho. Era água que pedia tanto para si como para sua cria. Enchi um balde e levei até eles. Não foi suficiente. Enquanto bebiam o segundo balde, acariciei o pescoço da vaca.

Devidamente saciada, o animal ergueu a cabeça e seus olhos bateram nos meus. Havia no seu olhar muita doçura, gratidão...amor.

Não ! Definitivamente, não conseguirei mais voltar a comer carne.
Eis aí a emoção “animal” que jamais esquecerei.

02/03/2009

O SOLITÁRIO (Delírios e Altruismos)

O médico clínico geral, de família abastada, filho de alto executivo de multinacional, que nunca trabalhara, deparara-se havia alguns anos com as misérias humanas, trabalhando na emergência de um grande hospital de São Paulo ainda como estudante dos últimos semestres do curso de medicina, convencendo-se a cada dia da fragilidade da vida. Adquirira ali, a consciência da mortalidade pelas quantas vezes assistira o domínio da morte, da dor, a crueldade assassina e o abandono do semelhante. Nem crianças em tenra idade eram poupadas naquele recanto de misérias.
Por causa disso e porque os estudos estavam exigindo muita dedicação, começou a sentir-se angustiado, com momentos de solidão e silêncio.
Numa noite, parou seu carro no acostamento duma estrada secundária, divisa de São Paulo com Minas Gerais, para respirar, pensar um pouco. Olhou para o alto, lua cheia, céu estrelado e caiu no lugar comum. Disse alto:
- Qual o sentido de tudo isso, essas estrelas, essa Lua? Quem comanda isso tudo? O que eu faço aqui, na mais absoluta ignorância?

Nas proximidades de São Tomé das Letras, deparava-se a uns 20 metros da estradinha de terra, num terreno plano, pequena casinha, com boa base construtiva, reboco externo bem acabado, duas janelas na frente e, sob elas, beirando a parede, florezinhas miúdas, violetas, “marias-sem-vergonha”, azáleas vermelhas. Perto, alamandas amarelas e roxas num canteiro cercado por pedregulhos do tamanho de melões. À esquerda, no meio do pomar enfeitado por algumas quaresmeiras, o poço e hortas mal cuidadas. Seu morador, vivendo humildemente, um homem jovem, barbudo. Quando foi notado, perambulava pelas matas, alimentando-se de vegetais e frutas silvestres que parecia tão bem conhecer.
A lenda que dele se contava, tinha muito de fantástico. Segundo ela, certa noite tivera um encontro misterioso com extraterrestres que dele se aproximaram, interceptando seu veículo num trecho deserto de rodovia. Mantido refém, ao que parece, pois que deixara de dar notícias de seu paradeiro, conta-se que fora submetido a certas experiências por esses seqüestradores alienígenas. Dias depois, fora libertado, numa noite escura, sob tormentosa tempestade. Ao acordar pela manhã, ensopado, localizado pela policia, ao ser informado onde estava, a dezenas de quilômetros de sua cidade e de onde se lembrava ter estado até acordar encharcado, teve um choque, perdendo os sentidos. Para sua família foi o alívio e a emoção do reencontro, já que o procuravam intensamente, imaginando coisas piores.
Após seis meses, recuperado da experiência, recobrou seu vigor mental, mas recusava-se a comentar o que se passara naqueles dias de ausência. Suas atitudes eram outras: tornara-se mais calmo, introspectivo exatamente o oposto de antes, aquele comodismo pelo conforto fácil de moço rico que tudo tinha.
Dois anos mais tarde, assim que concluíra o curso de medicina com dedicação na emergência hospitalar, retornou àqueles sítios nos quais iniciara sua experiência, ali se instalando precariamente, vivendo modestamente mantendo-se distante da vizinhança.
Essa mudança assim radical fora um choque para sua família, que tudo fizera para acertar o rumo de sua vida. Mas, para diminuir o desgosto de sua mãe, prometera um breve retorno.
Talento que demonstrara possuir e que começou a chamar a atenção dos moradores por perto, era o de cuidar de animais doentes e abandonados. Com essa virtude, os lavradores e chacareiros que de hábito o ignoravam, desconfiados com seu modo de vida passaram, a princípio hesitantes e encabulados, a procurá-lo com seus animais doentes, na certeza de que o estranho vizinho os curaria.Teve, certa feita, uma reação indignada quando uma mulher, trazendo uma cachorrinha doente, pediu-lhe que a sacrificasse para acabar com o sofrimento do animalzinho. Rispidamente, ele reagiu e se revelou:
- Eu estudei para curar, não para matar, senhora. Não é aqui que encontrará o desprezo pela vida! A cachorrinha, com rápido tratamento, obrigada a beber um chá feito de ervas, logo melhorou. Com essas ações, passou a ser admirado e respeitado pelos vizinhos e moradores do lugar que viam nele uma presença permanente de segurança e socorro. Com a pobreza à sua volta, passou a cuidar de crianças doentes e, com certa relutância, também dos adultos carentes e ignorantes, muitos bebedores de cachaça, fumantes inveterados. Chegara a fazer partos urgentes. As parturientes, sem exceção, diziam ter sido uma experiência tão menos dolorosa que o normal, falando até mesmo em "milagre". Assim, granjeou o solitário muita simpatia embora, de certa forma, fosse um pouco temido talvez pela sua barba espessa que escondia em parte seu rosto e pela fama que, inexplicavelmente conseguira, de feiticeiro. Talvez porque, para aquelas pessoas simples, as beberagens que preparava, tivessem algo de mágico. E o disco voador, ele não viajara com os marcianos, não aprendera com eles?Ninguém o incomodava porque a despeito de tudo o que fazia, não se aproximava dos vizinhos. Só era procurado quando houvesse alguma necessidade, doença em animais ou crianças. Para retribuir sua ação graciosa, num sábado de muito sol os moradores com habilidades, percebendo a dificuldade que tinha o estranho com as ferramentas, sem nada perguntar e nada revelar, melhoraram o telhado de sua casa, as hortas foram alinhadas, o pomar cuidado e limpo, a mato roçado. A reação do solitário fora de surpresa nos primeiros momentos mantendo-se em silêncio, olhos arregalados vendo aquilo tudo, aguardando o resultado final, aceitando ficar à margem do mutirão.
Ao final do dia, monossílabos de agradecimento e gestos que demonstravam gratidão pela ajuda inesperada que recebera.
Um indivíduo assim estranho, cheio de virtudes, numa pequena comunidade como aquela não poderia deixar de produzir comentários e curiosidade além fronteiras. Aliás, aquela região, mais naqueles tempos, era muito propícia a alimentar a curiosidade dos turistas, pela fama que alcançou em ser um "ponto" de discos voadores, pelas suas montanhas brilhantes. Numa manhã iluminada de sábado, chegou até sua casinha, um grupo de estudantes universitários, dispostos a desmistificar o misterioso morador altruísta e dado a feitiçarias.
Esses estudantes, ao se depararem com aquele estranho sujeito, tiveram certa decepção: estatura média, barbudo, franzino e não irradiava aquele ar santo que esperavam encontrar. Todas as perguntas de sua vida pessoal, ele ignorou, como se não as ouvisse. Quando se referiram à história dos extraterrestres, ele foi para dentro da moradia como se em sua volta não existisse nada além dos elementos da natureza e seus animais soltos por perto. Sem conseguirem as reações que esperavam, permaneceram em silêncio alguns instantes, imaginando a melhor estratégia para abordar o solitário. Havia, no fundo, o desejo sincero de conhecer as idéias desse sujeito raro que curava animais e homens. Já se decidiam a ir embora quando uma das moças presentes, a que tinha um gravador nas mãos, acendeu um cigarro. A sua reação fora imediata. Explodiu:
- Apague isso. Mulher que fuma não tem perfume, apenas cheira. E mal.
Entre surpresa e assustada, como se fosse uma ordem impossível de ser contrariada, ela apagou o cigarro. Atônita, perguntou meio sem convicção:
- Qual é, afinal, a sua verdade?
O solitário parou por um instante, como se refletisse na pergunta. Voltou-se, encarou a estudante com aqueles olhos pequenos e brilhantes, respirou fundo e, respondeu, deixando todos boquiabertos:
- A minha verdade? Mas, o que é a verdade? A estudante ligou o gravador. Seria a verdade a clássica definição daquilo que está em conformidade com o real, que não admite o oposto? O que é o real? Muitos sábios que proclamam "suas verdades" cometem tantas vezes erros grosseiros que acabam por ingressar na enciclopédia do absurdo. Tal tem ocorrido em todos os ramos do conhecimento humano ao longo do tempo. Na medida em que o homem evolui na alma e no conhecimento, as verdades se multiplicam...e se completam. Ou são corrigidas mesmo sendo “verdades”. Uma proposição não verdadeira, aceita como verdadeira por longo tempo, pode ter o mérito de provocar uma nova perspectiva, o oposto, proporcionando, então, uma "nova verdade" e a conseqüente ampliação do conhecimento. Do ponto de vista da sua interioridade, da alma, de seu grau de compreensão, de inteligência, de evolução espiritual o indivíduo se situa num certo patamar de crença e ali busca inspiração para entender sua vida mortal e, a partir daí, encontrar a sua verdade ou a verdade dos outros. Porque são muitos os que aceitam as "verdades" de outrem, sem questionar. Manifestações aceitas pelo adepto, podem um dia, num estalo, contrariar suas próprias descobertas interiores. Se não desprezar esse momento de revelação poderá encontrar na sua caminhada, novas indicações da verdade que busca. Eis porque são absolutamente insensatas as desavenças entre religiões e crenças e insanas as tais “guerras santas”, porque todas elas, a despeito de suas virtudes, imperfeições e ódios, são degraus para o alto ou para baixo até. Não falo sobre estas. A Grande Verdade, aquela que acabará florescendo na interioridade do ser humano, aquela que, por seus méritos, ser-lhe-á revelada um dia, a todos espera pacientemente.
Respirou e concluiu:
- A "minha verdade" pois, se situa nessa busca calma de um degrau superior ou lapidar uma pequena face nessa pedra brilhante que representa a Verdade.
Perplexos com a longa resposta, os estudantes mantiveram-se por alguns segundos em silêncio. Não sabiam como prosseguir a conversa e se, numa nova pergunta, haveria resposta. Recolhera-se o solitário ao seu mutismo habitual. Debruçou-se sobre a base redonda do poço e desceu o balde. Na sua subida entoara aquelas notas cadenciadas dos grossos pingos retornando à sua base, redonda, límpida e primorosa, fazendo rodelas no espelho lá embaixo. Tendo o balde quase cheio à sua frente, apoiado na borda do poço, por alguns instantes parecera meditar ou orar sobre a "benção da água". Em seguida, despejou pequena parte dela numa moringa. O resto pôs numa vasilha para uma cabrita e seu filhote que o rodeavam docemente.
Um dos estudantes com semblante debochado, acadêmico de direito, refeito da surpresa da intervenção do solitário há pouco, aguçara sua veia irônica.
- Doutor, mas qual o sentido da vida, hem?
Sem se virar para ele, o solitário respondeu:
- Percebo a provocação contida em sua pergunta séria, jovem, e sinto as angústias de seus dias e sua luta de superação, mas vou respondê-la sem qualquer graça ou troça “doutor”. Essa indagação sempre me afligiu quando, por exemplo, me deparo com o mistério de ter, à frente, mirando-me nos olhos, um outro ser humano e, ao seu lado, em sua casa, animais domésticos que lhe dão amor, nunca pedindo nada em troca e, ainda mais, no seu jardim, plantas e flores que seguem com incrível beleza e sabedoria, seu próprio ciclo, apontando para as alamandas. E o que dizer dos pássaros, dos beija-flores, das árvores frutíferas, das abelhas.
Olhe para o alto e sinto o Universo sem fim...e sem começo. Qual o sentido da vida? De onde vim? Que faço aqui? Para onde vou quando morrer? São perguntas freqüentes que intrigam a vida terrena efêmera. Quem não pensa nisso tudo, tendo diante de si um amigo ou parente inerte, morto? É, portanto, uma pergunta muito difícil de responder. Quem me dera pudesse respondê-la, precisa e definitivamente. Sofri muito com isso, por experiências passadas, mas adotei o sermão mais comum. O “propósito da vida” está no aprendizado, na busca pelos séculos, de valores interiores e o encontro do ser humano com a verdade que ele traz na alma, o fragmento divino, ou de Deus, chame essa fonte original do que você quiser. O homem carrega dentro de si um templo. A grande religião que parece estar tenuemente avançando ou selecionando alguns, é aquela em os homens vagarosamente vão encontrando chaves para a abertura desse seu templo. As religiões, mesmo as que fazem da fé um negócio lucrativo poderão auxiliar nessa revelação porque por ela o fiel pode dar um passo à frente. As religiões, então, não importa em que grau de espiritualidade ocupam, servem para ir despertando seus praticantes para esse novo patamar. Todo o processo de elevação espiritual, de santidade, embora possa ter por alavanca uma qualquer religião, se consolida dentro do homem, em sua alma, numa profunda experiência psíquica. É no seu interior, sem testemunhas, que ele encontrará a manifestação suprema. Quando o homem encontrar a divindade dentro de si, terá ele subido vários degraus nos rumos da santificação e, então terá mais revelações sobre os propósitos da vida. Mas, você aí com esse olhar de sábio debochado, está disposto a alcançar a santidade, a renunciar, a perdoar as ofensas? Muitas vezes me fiz essa pergunta. Muitas vezes vacilei. De que serve essa aspiração se sou feliz assim? Silenciou como se voltasse a meditar. Encarou o estudante agora atento à explanação e prosseguiu:
- A humanidade não é uniforme: nesta escola de aprendizagem muitas são as classes e mundos: "Na casa de meu Pai há muitas moradas", disse Jesus. Há seres humanos que se destacam pela humildade e grandeza, há outros que se destacam pela soberba e outros que se comportam como bestas-feras. Quais as razões dessas diferenças? Parece que dispomos neste mundo níveis que vão do jardim da infância à universidade de altíssimo nível. No jardim da infância são matriculados seres humanos cujas almas havia pouco se libertaram de uma massa mais densa, num misterioso processo de evolução e mutação. Assim considerados, podem cometer desatinos da maior gravidade. Mas, aprenderão tendo como mestre a lei da causa e efeito, isto é, "o que você faz, você recebe na mesma proporção e intensidade, mais dia menos dia, no momento preciso". Há as classes intermediárias, onde os seres humanos matriculados têm consciência das forças do bem e do mal. De regra, optam pelo bem, porque é mais forte aquela voz da consciência. Mas, é claro, cometem deslizes e desatinos, às vezes, também, da mais elevada insensatez. Finalmente, os "níveis superiores" ocupados pelos líderes espirituais sinceros e filósofos que pelas suas palavras e ações, ajudam e inspiram toda a humanidade a evoluir, chamada à razão e a trilhar o caminho da caridade, da humildade e do perdão. Esses vários degraus ou níveis só podem ser explicados pela reencarnação. Porém, de onde provém, originariamente, essa "matéria" extremamente leve ou extremamente densa que é a alma humana, segundo seu estágio evolutivo, é um mistério, até aqui acima da compreensão ou vedada a revelação ao homem no seu atual estágio. Depois, note como os reinos inferiores, mineral, vegetal e animal evoluem, se transformam e se aperfeiçoam. Há guias invisíveis designados para que esse processo decorra irreversível. Por isso eles podem nos emocionar: quem já não se encantou pela beleza de algum mineral? Ou se emocionou diante de uma floresta majestosa? Diante de um riacho límpido e harmônico no meio da floresta? Ou pelo sentimento de amor permanentemente transmitido por um animal doméstico ou domesticado? Como um processo permanente de ajustes, cabe ao homem a missão de voltar ao mundo em muitas vidas, não só para prosseguir no aprendizado como, num dado momento, para auxiliar e ensinar seus semelhantes, com seu conhecimento de irmão mais velho e evoluído. E praticar a caridade.
Demonstrava o palestrante agora um certo cansaço, incomodado com visitas não anunciadas. Impaciência nos seus gestos, mas parecia se conter porque talvez houvesse algo mais a ser dito.
O estudante de direito desfez o ar de deboche e se perguntava constrangido se o “cara” não seria sensitivo:
- Que história era aquela quando disse “sinto as angústias de seus dias e sua luta de superação”? pensou.
Instantaneamente o solitário se voltaria e o encararia com aquela ar sereno e sem malícia. O estudante baixou os olhos.
A estudante perguntou, então, de forma direta valendo-se do que lhe restara de coragem:
- Essa sua renuncia aos valores do mundo, essa vida humilde, não tem algo de demagógico ou, no fundo, muito de vaidade, para se mostrar diferente dos demais? O senhor é médico ou veterinário?
O solitário permaneceu calado por alguns segundos como já se dera antes. Afagou o cabritinho ao seu lado e respondeu:
- Há na Bíblia menção à vaidade, dita pelo Pregador: "Vaidade de vaidade, tudo é vaidade" porque tudo volta ao pó e o espírito volta a Deus. Assim, a minha vaidade consiste em encontrar, por mim próprio, "palavras de verdade", de tal sorte que possa eu inscrevê-las lapidadas, ainda que numa pequena face daquele brilhante a que já me referi. Será demagogia ter tal aspiração? Quanto à vida humilde ou modesta, assumi esse modo não apenas como um requisito para alcançar aquele objetivo. E eu me sinto muito bem assim. Há modos de felicidade. Se sou médico? Procure você mesma a resposta
Ditas essas palavras, o solitário encerrou sua explanação abruptamente. Fizera um sinal quase imperceptível de que era hora de deixá-lo só, com suas tarefas. Gravador desligado. Os estudantes deram um "até breve" e partiram sem olhar para trás um pouco encabulados pelo que esperavam encontrar e aquilo que realmente encontraram.

Na noite desse mesmo sábado, choveu muito. Uma tempestade. No domingo ensolarado, manhã inspiradora porque tanto os pássaros como as árvores festejam a chuva da madrugada, os vizinhos a caminho da missa e dos seus cultos, notaram o silêncio no casebre. Os animais estavam por ali, alimentando-se. Mas, pareciam agitados, desconfiados.
- Ora, o homem saiu um pouco pelo mato, lá pro riacho que hoje está cheio. Logo mais tarde ele estará de volta, disse um fiel para sua esposa. Mais tarde, retornando, os vizinhos notaram que o "feiticeiro" continuava ausente. À tarde saíram à sua procura. Não o encontraram e não descobriram qualquer vestígio de seu paradeiro. Entraram na casinha e ela estava limpa como se esperasse a volta breve do seu morador. Mas, ele não voltou no dia seguinte e não mais. Os seus vizinhos agradecidos por tantos favores, preocuparam-se em cuidar dos animais como ele cuidava. Na mente simples daquelas pessoas, o homem solitário viajara para sempre com os extraterrestres. Afinal, não fora abandonado por eles depois de o terem sequestrado numa noite de chuva forte?

Mas, há outra versão: não gostaria de se constituir numa "atração turística". Parece que já vinha se preparando para outra morada, adiara por causa dos seus animais e pela carência de seus vizinhos, mas os estudantes foram a gota d’água. Hoje, quem sabe, estará nalgum outro recanto, curando animais e homens, em silêncio, levando uma vida simples sob o manto da natureza e das divindades que sua alma procura.
Ou por outra, voltado à sua vida de médico clínico na emergência de algum hospital no mais absoluto anonimato. Parece que assim se dera, alguém dissera um dia.

27/02/2009

SEM RELIGIÃO. Aqueles que acreditam mas não professam



Ficar por horas dentro de um avião constitui-se, para mim, um sacrifício imenso de desconforto, um exercício penoso.
Para realmente esquecer meus timbres claustrofóbicos, numa viagem, decidi que teria que ler um pequeno livro, mais precisamente o Bhagavad Gîtâ (pronúncia: bagavad guitá, que significa “sublime canção”).
Trata-se, segundo sua introdução, de um dos livros mais importantes do mundo, prezado pelos budistas e venerado como escritura sagrada pelos brâmanes (sacerdotes indianos) que, “freqüentemente, o citam como autoridade no que se refere à religião hindu.”
O livrinho relata os ensinos da divindade (Krishna) ao príncipe Arjuna, merecedor desses ensinamentos por causa de sua nobre alma.
A busca é pela santidade, considerando que,
“Aquele que se separou dos efeitos dos desejos, e abandonou os prazeres da carne, tanto em pensamento como em ação, caminha diretamente para a Paz. Quem deixou atrás de si o orgulho, a vanglória e o egoísmo caminha diretamente para a Bem-aventurança”.
E a bem-aventurança pode significar a desnecessidade de renascer na terra, “neste lugar de sofrimentos e limitações”, porque aqueles que se uniram ao Altíssimo, “já atingiram a esfera da Perfeita Sabedoria, Suprema Ventura e Vida imperecível.”
Esse diálogo entre a Divindade e Arjuna, é direto, sem intermediários, sem guias, nem gurus: “desiste de todas as obrigações religiosas, e toma-me como teu único refúgio. Eu te libertarei de todas as dificuldades. Não te aflijas.”
Mas, há esta ressalva:
“Há muitos que não descobriram esta verdade por si mesmos e em si mesmos, mas ouviram a doutrina e os ensinos de outros, e respeitam-nos; também estes, agindo de acordo com a doutrina, vencem a morte pela força da fé”.
Com esses princípios claros na mente, desembarco em Lisboa.
Não demoraria muito, e partiria nos rumos de Évora. Tudo em Portugal é perto. Duas horas de ônibus e se chega a essa cidade cercada por muralhas construídas pelos romanos. Rumo à Igreja de São Francisco. Na sua entrada, numa pequena placa, há uma mensagem atribuída a Santa Tereza de Jesus:
“Nada te perturbe,
Nada te espante
Tudo passa
Deus não muda e a paciência tudo alcança
Quem Deus tem, nada lhe falta
Só Deus basta”
Ainda vivas as mensagens contidas no Bhagavad Gîtâ, achei bastante interessante essa pequena mensagem, porque se “só Deus basta”, o caminho seria, com paciência, que “tudo alcança”, estabelecer um diálogo direto com Ele. Um diálogo franco como relatado no Bhagavad Gîtâ.
Mas, depois de conhecer a sacristia da Igreja mantendo impressões agradáveis, aquelas levezas todas, voltei para o chão duro. Um impacto inesperado contrapondo-se a essas vibrações experimentadas e eis de volta a réstia de uma angústia.
Do lado da Igreja de São Francisco, há a Capela dos Ossos, construída por franciscanos no século XVI na qual, nas paredes, estão incrustados, cobrindo-as totalmente, cerca de cinco mil crânios humanos e, nos pilares, até mesmo ossos de membros inferiores.
Todos esses crânios e ossos foram obtidos em cemitérios precários que existiam ao lado das igrejas. E no pórtico, no alto, se lê: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.”
Claro que tal capela tem por objetivo lembrar a fragilidade do ser humano, concitando-o à humildade, à reflexão, sacudindo-o de sua soberba e da ganância.
Todos esses simbolismos e mensagens das duas capelas têm um sentido: o de chamar a todos à transcendência da alma, da vida e ... da morte.
Saí da Capela dos Ossos não transtornado pelos crânios e ossos, mas por uma indagação que havia relevado até então.
O Bhagavad Gîtâ traz lições de como não voltar a reencarnar neste “lugar de sofrimentos” o que pode se dar com a prática da virtude e a busca de Deus na própria interioridade mas não dá pistas do porquê encarnamos.
Por que temos que estar “neste lugar de sofrimentos e limitações”, seguir uma trilha? Por que certos episódios da vida eclodem sem o nosso controle? Ou são eles eventos insondáveis decorrentes da lei da causa e efeito a que nos propusemos a enfrentar? Ademais, neste mundo, são notórios os semelhantes que transmitem virtudes elevadas e ao seu lado outros que parecem viver num estágio pouco acima da barbárie. Os pós-graduados ao lado dos primitivos, dos penitentes.
E aí surge aquela indagação tão antiga: qual o sentido da vida?
Que mundo é este? E muitos podem até afirmar: “sou feliz neste mundo, pratico virtudes, mas não a ponto de renunciar a tudo em busca da “Vida imperecível.”
Por que terei que fazê-lo?
Há alguns anos, o saudoso papa João Paulo II referira-se ao crescente fenômeno do denominado agnosticismo na Europa, acentuando “que a verdadeira fé foi substituída por “um sentimento vago e pouco comprometido que equivale a um ateísmo prático”.
Antes uma explicação sobre o “agnosticismo”, baseado na Wikepédia que bem sintetiza o significado: o termo foi cunhado pelo professor Thomas Henry Huxley, “avô paterno do escritor Aldous Huxley (autor de Admirável Mundo Novo) numa reunião da Sociedade Metafísica, em 1876”. O agnóstico nega tanto o Ateísmo como o Teísmo porque “acredita que a questão da existência ou não de um poder superior (Deus) não foi nem nunca será resolvida(...) e que nós não sabemos nem poderemos saber se um deus existe.” Há pouco (2012) o IBGE, revelava que o brasileiro abandonava a religião mas mantinha a fé. O porcentual encontrado para esses que assim se classificaram, "sem religião" é de 8%
A mudança de religião ou o afastamento de qualquer delas pode ter muitas motivações pessoais, mas até mesmo de ordem filosófica, como o da liberdade de pensar, de se autoquestionar sem a influência de dogmas, de religiosos, de doutrinas.
E isso pode ter como causa o desencanto casual com religiões que à exaustão repetem ensinamentos bíblicos literais que não satisfazem nestes tempos de atribulações redobradas ou se desiludem com religiões-negócio, nas quais Deus é mero coadjuvante. Os tempos são o da informação.
E há a falta de respostas nesses mistérios que permeiam a vida, quando pensada. O seu sentido, a partir do nascimento ou dos nascimentos, para os que acreditam na reencarnação.
Com essas indagações muito optam, então, por tentarem um diálogo direto com a Divindade (“Quem Deus tem, nada lhe falta; Só Deus basta”).
Assim esse “contato direto” entre o fiel e a Divindade não é algo novo. Há que lembrar as proposições de Krisnamurti, cujas idéias tiveram repercussão por décadas nesses círculos que meditam sobre as coisas transcendentes da existência.
Antes, algumas informações de quem foi ele: místico-filósofo, nascido na Índia no século 19, rejeitou sua iminente condição de guru como planejava a Sociedade Teosófica que o educara e o iniciara para essa atribuição. Disse ele:
“A mente religiosa difere completamente da mente que crê na religião. Não podeis ser religiosos e ao mesmo tempo hinduístas, muçulmanos, cristãos e budistas.” (cf. Francisco Ayres, “Krisnamurti” – Ed. Soma/1984).
Bom que se esclareça que na nossa visão, Krisnamurti deixa muitas de suas proposições sem resposta.
No meio científico, fiquemos com frases expressivas de Stephen W. Hawking, extraídas do seu livro “Uma Breve História do Tempo”, na sua conclusão ao suscitar o debate “sobre a questão de por que nós e o universo existimos”:
“Se encontrarmos a resposta para isto teremos o triunfo definitivo da razão humana: porque, então, teremos atingido o conhecimento da mente de Deus.” Não deixa de indagar porém: “Mas, se realmente o universo é completamente autocontido, sem limites ou margem, não teria havido começo, nem haverá fim; ele seria simplesmente”. E pergunta: “Que papel estaria reservado ao criador?”
Como aceitar a imensidão do universo em expansão e negar a existência de alguma inteligência Superior que a tudo controla? O papa Bento XVI, recentemente zombou dessa noção científica de um “cosmo matematicamente ordenado”, porque “sem Deus, as contas não fecham para o homem, para o mundo e o universo”.
A questão toda está em imaginar um dia compreender a mente de Deus. Esse Deus-mistério que nos leva a esse nível de perplexidade e ininteligências. Insondável.
Bem, vamos encerrando. Esse “caldo de cultura” deve ser a causa do aumento daqueles que se declaram “sem religião”. Mantém a fé, meditam e podem até partir para a contemplação – “meditação profunda”, segundo o Aurélio - como já sugeriu o mesmo Papa Bento XVI.
Mas, buscando em si mesmos a sua religiosidade. No silêncio de sua interioridade, na sua intuição. E na sua Paz.

25/02/2009

O DESERTO E O MAR (Reflexões sobre a Paz)




Roberto fora um executivo de empresa multinacional que um dia "cansado de ser conduzido pela vida" decidiu abandonar a carreira vitoriosa passando a levar vida modesta no litoral paulista, embora desfrutasse de excelente situação financeira.
O relato a seguir proveio de uma palestra que ministrou há alguns anos, quando deu a conhecer as transformações havidas em sua vida, a partir dessa sua condição de pescador eventual.
A nova forma de viver adotada por ele tinha lá seus momentos de tédio, a despeito de ser ávido ledor e dispor de enorme disposição para apreciar o mar, as paisagens que descobria percorrendo todo o litoral paulista avançando para o norte com seu barco.
Certa feita, só, saiu pelo mar adentro para pescar. O sol do meio-dia estava muito quente, batendo forte em seu rosto. Sentia certo desconforto com aquele calor intenso, o balanço do barco lhe provocava enjoo, por isso meio arrependido por estar ali, naquele momento. Desviou-se para os intensos movimentos na vara de pesca presa numa saliência externa da cabina.
Um peixe de cerca de 60 centímetros mordera o anzol. Era o primeiro do dia. Sem muita dificuldade, o peixe foi trazido para o barco debatendo-se violentamente relutando à morte certa, posto num chão quente sob sol escaldante.
O peixe ferido querendo a vida, Roberto perturbado pelo sol intenso sobre sua cabeça. Uma leve tontura o prostrara. O enjoo se agravava, ele que superara esse sintoma havia muito depois do vexame numa excursão de alto nível num barco moderno: mar agitado, seu estômago não resistiu, resultando no vômito de vento que se prolongou por tempo suficiente para chamar atenção de outros executivos, obrigado a ouvir piadas. Um executivo português: “Está a vomitar seus pecados”.
Fixando-se no movimento do peixe, sua cabeça começou a rodar. Parecia estar próximo de um desmaio. Com a sensação de estar também preso no anzol? Olhou para o mar e não o viu claramente. Quanto mais procurava enxergá-lo mais ele se transformava num ... deserto. As ondas além transformavam-se em dunas e a leve brisa em tempestade de areia violenta. No meio dela, parecia ver vultos humanos mal formados em movimentos apressados, parecendo acenar para ele. Em vias de perder o sentido, recostou-se na cabine do barco. O peixe debatia-se bravamente ao sol, mas dava agora sinais de sua morte iminente. Roberto voltou-se para ele como pôde, com cuidado livrou-o do anzol e o devolveu ao mar.
- Quem sabe ainda sobreviva, pensou confuso, com o estômago na boca. Veio-lhe a frase de Tolstoi em “Ana Karenina” que jamais esquecera: “Gostava de pescar a linha e parecia envaidecer-se com o fato de apreciar um entretenimento tão estúpido.”
Permanecendo quieto na cabina, bebendo água gelada, molhando a testa suada com ela, foi se recompondo. Uma hora depois, mais disposto, voltou ao controle do barco, retornando à terra, embora ainda tonto com o mar e o deserto que eclodira em sua mente.
A noite fora tranquila. Lá pelas tantas da madrugada, levantou-se e permaneceu na varanda ouvindo o marulho, recebendo no rosto, em cheio, a brisa refrescante de uma noite muito quente.
Claro que a "miragem" do deserto lhe martelava a cabeça. Tudo bem que fora um mal-estar provocado pelo calor, pelo enjoo, pelo sol. Mas, porque a imagem do deserto, suas dunas ampliadas de ondas baixas e a tempestade de areia tão autênticas?
Passara, então, a fazer uma autocrítica. O que significava sua vida, desde que passara a residir no litoral, senão uma vida ociosa, mentalmente estéril, a caça predatória de peixes porque nem sempre os consumia? Afinal, não abominava a caça como esporte, a própria pesca esportiva, tão ridícula e as touradas?
A impressão que tivera então de si próprio é de que se encontrava num processo de decadência mental, porque vida interior ele não possuía nenhuma.
Em poucas palavras: o deserto que vira em sua quase insolação era rigorosamente ele próprio, sua alma clamando por mudanças. Voltou para dentro da sala confortável, entrou no pequeno escritório e consultou um mapa da África. Com o dedo "viajou" por todo o Deserto do Saara, começando pelo Atlântico Norte.
Lá estava o Marrocos e a cidade de Casablanca. Viajou mentalmente embarcando no filme do mesmo nome, que ajudou a celebrizá-la, Ingrid Bergman linda, jovem. Em seus ouvidos, a música do filme soava harmoniosa ("As time goes bye"), cantada por "Sam", até que "Rick" (Humphrey Bogart) melancólico o interrompeu. E nesse momento reencontrou sua ex-amada. Quem dera houvesse um bar como aquele, o "Rick’s Café Americain" do filme!
Decidira que em poucos dias viajaria para o Marrocos, não para encontrar o "Rick’s Café", uma figura de ficção, mas para chegar às margens do Deserto do Saara por aquele país. Viajaria de camelo, conheceria alguns oásis e a vida que neles existia.
Quem sabe, conforme ironicamente pensava, visse o mar no deserto, da mesma forma como vira o deserto no mar. Dois meses depois, viajou para o Marrocos, rumando logo para Casablanca, a principal cidade do país, moderna, sem perder, mesmo com a forte influência européia, o timbre da cultura árabe. Permaneceu algum tempo observando a Praça das Nações Unidas que dá a Casablanca aquele aspecto de cidade desenvolvida. Dali partem diversas avenidas rumando para pontos diferentes da cidade e para os seus bairros. O cenário do filme jamais existira. Talvez nos bairros periféricos pobres afastados do centro da cidade poderia haver alguma semelhança. Só isso. Uma breve troca de impressões no café do aeroporto de Casablanca com um turista chileno que voltava para o seu país, impressionado com o que vira em sua excursão ao Marrocos lhe alertara da possível decepção.
Dois dias depois viajou para a Tunísia, um país pequeno, pouco conhecido, mas com monumentos excepcionais. Gostou de Tunis. Comunicando-se em inglês, nada fácil num país que fala árabe e francês, conseguiu sobreviver com os resquícios da língua que sempre odiara nos tempos da escola. Hospedou-se num hotel quatro estrelas, simples e confortável com talento de três, porém
Uma tarde, desorientado e cansado de ouvir o som de múltiplos idiomas especialmente o árabe e o francês, parando para se recompor ao lado duma loja de tapetes num dos centros comerciais de Tunis, com muitas ruelas e dezenas de lojas, foi abordado por um dos comerciantes que falou em francês e depois um espanhol rudimentar, língua falada nesses centros comerciais, oferecendo-lhe seus artigos. Ao saber que era o visitante, brasileiro, quis saber tudo do país, do futebol ao Carnaval e se era a festa pagã tão imoral como falavam e que vira algumas fotos numa revista. Cheio de “mulher pelada”. Roberto explicara que se tratava dum acontecimento com forte apelo turístico e que os abusos vinham diminuindo. O carnaval de rua era sobretudo uma festa do povo na qual se misturavam ricos e pobres que se deslumbravam com o luxo das fantasias e que as escolas eram constituídas de gente simples e sofrida das favelas, na maioria. Eram seus dias de extravasar e esquecer as dificuldades. Mas, que o Brasil não era só carnaval e futebol, havia cidades de grande projeção, como São Paulo.
Antes de sair, comentara que no dia seguinte, porque nada havia planejado, tentaria fazer uma breve excursão pelo deserto, fora do circuito turístico, passando algumas noites na sua imensidão. O comerciante com muita simpatia, de pronto apontou para um homem próximo, de pé, do lado oposto da galeria, numa loja de artesanato, alto, pele morena queimada de sol, rosto fino, barba trabalhada. Roberto percebeu que ele os observava. O comerciante chamou-o e ele se aproximou.
- Ele é um excelente guia, você aprenderá muito com ele se quiser que ele o acompanhe. Isso se o senhor abrir mão do luxo. Pode confiar, ele organizará tudo. Ele conhece tudo. Ele speak English.
Ao encará-lo percebeu que seus olhos transmitiam algo diferente, talvez serenidade. Comunicava-se num inglês razoável. Quis saber Roberto de onde era, de que região, se tunisiano o seu possível guia, ele desconversou apenas fazendo um gesto girando a mão direita apontando o indicador para o alto, dando um sentido de que poderia ser daquela região. Revelara-se de poucas palavras.
Dois dias depois, preparado, com as informações precisas e a ajuda do guia taciturno aproximou-se do deserto do Saara enfrentando na viagem algo em torno de 800 quilômetros dentro de um jipão. Embora existindo opções mais modernas, ao adentrarem no deserto boa parte do trajeto foi vencido no dorso de camelos, esses animais admiráveis, mal humorados, nascidos para servir os habitantes e os visitantes do deserto.


Roberto passou a habitar uma tenda e lá, naquele ambiente tão precioso para os nativos, tão simples, convivendo com golfadas de vento forte e tempestades de areia, finíssima, começou a ter impressões do deserto, especialmente ouvindo o seu silêncio.
Numa noite fria do Saara depois de um dia de alta temperatura que o fizera suar em bicas, tivera a primeira sensação da imensidão do universo sem fim, sem começo, sem data, habitado no alto por milhões de corpos celestes. Como tudo aquilo poderia ser possível? Que forças administravam aquele universo cadenciado? Casualidades é que não poderiam ser. Um susto: sob aquela imensidão, tivera despertado, tão marcantemente, a consciência de sua mortalidade. Ou de sua imortalidade...
À medida que insistia em contemplar aquele paisagem, aquela formação de areia a perder de vista e especialmente o teto inatingível do deserto mais reforçava a idéia de sua fragilidade, de sua humilde condição humana. Com dificuldades de comunicação, tendo pouco contato com os demais habitantes, solitário, sentiu-se aliviado ao voltar, saindo do deserto com aquele seu guia que sempre estivera por perto e chegara para acompanhá-lo no retorno. Na viagem depois de um longo silêncio, já se aproximando de Tunis, Roberto comentou:
- Permanecer no deserto, no seu imenso silêncio e imensidão, fez-me mais humilde, mais resignado. Vou pensar muito no que vi e senti. A resposta seca de seu guia:
- O primeiro passo para a sabedoria, porque você se despoja da vaidade e da arrogância mundanas que para nada servem, só atrapalham aquilo que você parece estar buscando.
- Mas o que “parece” que eu estou buscando, explique-se?
O guia manteve-se em silêncio, olhando a frente pelo parabrisa do veículo, sem se voltar deu uma resposta enigmática:
- Creio que um oásis verdadeiro em sua vida onde você se prostrará, nem tanto o mar e sua brisa, nem tanto o deserto e sua quentura. Roberto ficara atônito com a resposta pela referência "ao mar", mas silenciou, até porque seu interlocutor fizera o mesmo. No dia em que Roberto se dispôs a voltar ao Brasil, esse seu guia, com a mesma atitude silenciosa despediu-se com alguma simpatia, falando em português, língua que desconhecia, uma única palavra: PAZ !
Por uma dessas coincidências inexplicáveis, o advogado, que já ouvira algo sobre o executivo que abandonara a carreira para viver de modo simples no litoral de São Paulo, ocioso para alguns, convidado por um amigo, num domingo de manhã, com relutância foi ouvir uma palestra da qual pouco sabia, apenas que se tratava de ex-diretor de multinacional que falaria de suas experiências e buscas interiores.
Num primeiro momento não ligara os pontos. Eis que era ele, o tal executivo, um sujeito alto, barba rente, grisalha, rosto escurecido pelo sol, atrás de uma mesa simples, numa pequena sala de sociedade de bairro, propondo-se a falar para não mais do que 30 pessoas, algumas humildes que nas fábricas em que fora diretor jamais dele se aproximariam. Seu semblante apagara aquela imagem altiva e mesmo arrogante que transmitia nas fotos estampados nos jornais e revistas de negócios de outros tempos.
Sua palestra fora até simples, enfatizando os aspectos ecológicos que cada um tinha o dever de se preocupar diante do enfraquecimento das potencialidades da Terra tal a devastação que se processava, o respeito aos animais que são seres vivos em evolução, a busca pela paz interior, meditar como forma de ampliar a consciência, melhorar como indivíduo e o próprio mundo.
Foi bastante didático. Fixou num tripé uma mapa da Europa e do norte da África que trouxera debaixo do braço e com uma varinha de bambu envernizada, parecendo parte de vara de pescar, explicou a localização do Marrocos e da Tunísia e circulou com o indicador todo o imenso deserto do Saara.
Encerrada a palestra, no momento das perguntas Roberto fora mais preciso nas suas idéias:
- O seu destaque à palavra paz, deixou-me na dúvida. Qual o significado que ela contém, até pelo fato de seu guia do deserto, ao se despedir, tê-la pronunciado em português.
- Porque a paz contem perdão e amor. Talvez seja o perdão a maior de todas as virtudes, porque pode significar a resignação, até mesmo uma renúncia, diante de uma ofensa ou de uma traição. Vejam que a traição é de tal ordem devastadora, que muitos traidores são tão célebres quanto os traídos ilustres. O perdão sepulta o ódio, o rancor e a vingança, que são forças destrutivas que nos levam a contrair dívidas à luz da balança universal. Ofensor pela sua ofensa e ofendido pela vingança, têm a mesma culpa que permanece registrada na alma de cada um para ser purgada no momento propício. Só o perdão ameniza a culpa do ofensor que pode se arrepender. Eis porque se constitui num gesto tão difícil de ser praticado. O perdão é manifestação de amor. Um chavão muito utilizado em campanhas ou algo assim é profundamente verdadeiro: o amor é construtivo, a antítese do egoísmo, da indiferença e do ódio. Ele pode significar um gesto, um sorriso, uma palavra de estímulo e até mesmo renúncias para ser oferecido em toda a sua plenitude aos semelhantes. Aí está a paz. Foi Cristo quem recomendou aos seus apóstolos: encontrando alguém digno na cidade, ao "entrardes na casa, saudai-a dizendo: Paz seja nesta casa". Vejam! PAZ como saudação cristã.
- O Sr. falou muito em contemplação, meditação, etc. Sei de religiosos que passam a vida meditando. Tal prática não significa uma posição inútil em relação ao mundo que precisa tanto de ações objetivas?
- O homem é muito poderoso pela força de seu pensamento. Há alguns semelhantes nossos que são de extremo brilhantismo e desvendam coisas maravilhosas. O pensamento é uma força poderosa. Formularei uma imagem talvez até já tenham ouvido algo semelhante: já não passaram os senhores nas proximidades de um local fétido e, no meio da deterioração dos elementos, uma flor aparece linda, exalando um perfume que todos aspiraram com prazer e alívio, amenizando a podridão em volta? Todos perguntam: como é possível isso? Pois bem. Esses religiosos, com esse tipo de vida que escolheram, propagando pensamentos de paz, amor, caridade e perdão isolados em suas celas longínquas, são como o perfume da flor a que me referi, expandindo pelo mundo. Muitos captam essas vibrações que permanecem em sintonia própria na nossa esfera mental e, por vezes, como se falassem à própria consciência, mudam repentinamente para melhor a atitude do receptor em relação ao semelhante. Muitos são os perfumes que melhoram o mundo. A oração do devoto pode surtir o mesmo efeito. E infelizmente, os sentimentos de ódio, imagens de ódio, também, mas em sentido contrário.
- Parece que, para buscar o autoconhecimento, é preciso ser rico. O Sr. fez uma viagem cara aos desertos. E para os que não têm dinheiro para essas viagens ?
- Li nalgum lugar uma fábula mais ou menos assim: o discípulo abordava seu mestre, um sábio, insistente, dizendo-lhe que queria conhecer a verdade. Certo dia, convidou o sábio o discípulo para irem a uma lagoa próxima na qual explicaria sobre a busca da verdade. Lá chegando, o sábio num gesto rápido levou a cabeça do discípulo para baixo da água deixando-o assim, por alguns instantes. Quando o discípulo se recompôs da surpresa, o mestre lhe perguntou: - O que você mais desejava quando estava com a cabeça sob a água? Ar, respirar, respirar, respondeu o discípulo ainda atordoado. Com a mesma intensidade de respirar deverá partir em busca da verdade, ensinou-lhe o mestre. Claro que esse tipo de "busca da verdade" escapa de nossa vontade imediata. Uma forma alternativa de conseguir alguma maturidade no caminho do conhecimento são exatamente as viagens aos locais conhecidos como sagrados ou julgados inspiradores. Pelas suas vibrações ou por nossa própria receptividade mental em lá estar, podem nos inspirar e nos abrir frestas importantes no nosso auto-conhecimento. Mas, mesmo esse recurso é limitado. O aspirante prega a iluminação interior, o encontro da paz, mas num dado momento ele próprio não avança. As revelações interiores estancam. A partir daí, com todo o cuidado no rumo a seguir, talvez seja necessário buscá-la com a mesma intensidade que tinha o discípulo em respirar quando com a cabeça sob as águas do lago. E essa busca dispensa viagens exteriores, só interiores.
- O Senhor foi um homem poderoso e é rico. Por que agora assume posição tão modesta, vindo falar para pessoas tão simplórias, operários e operárias como nós?
- Qual a primeira ou a principal das virtudes do ser humano? Amor ao próximo? A honestidade? A lealdade? A amizade? O altruísmo? Se fosse feita essa pergunta a qualquer dos senhores, talvez uma dessas ou todas as mencionadas fossem de pronto citadas. Mas, e a modéstia? Não seria, também, uma destacada virtude? A própria palavra vibra simplória: MODÉSTIA. Ela pode ser usada como algo de pouca expressão: "aquela casa é modesta". Mas, a sua existência como virtude humana, parece agregar um pouco de todas as outras: o amor ao próximo, porque a modéstia respeita o semelhante, a honestidade, porque a modéstia se encaminha para o desprendimento de certos valores normalmente aproveitados pela soberba, a lealdade e a amizade, porque a modéstia tende a não reconhecer a perfídia e defende o altruísmo, porque ela vê pelos seus próprios olhos um semelhante que pode necessitar de ajuda, sem esperar reconhecimento. Tanto que o dicionário a define utilizando palavras como "simplicidade", "reserva", "pudor", "decência", "gravidade", "compostura". Ela contém um pouco de todas as outras virtudes ou tem afinidades com elas. Eis porque parece difícil ser-se modesto sempre, desprendido. Nos textos filosóficos a modéstia ocupa lugar especial. Assim, Jesus Cristo, no "Sermão da Montanha", na versão de São Mateus (5, 3), "abrindo a boca" disse: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus." Costuma ser aceito como correto significado para "pobres de espírito", os humildes. No "O Evangelho Segundo o Espiritismo" de Allan Kardec: "Por pobres de espírito, entretanto, Jesus não entende os tolos, mas os humildes, e diz que o Reino dos Céus é destes e não dos orgulhosos." Um dos significados de "humildade", no mesmo dicionário, é exatamente a modéstia. Mas, muitas vezes aquele humilde, desprovido de bens, não é necessariamente modesto, mas revoltado, amargo. Pode até ser compreensível esse estado destrutivo pela sua existência dura. A modéstia contempla, também, certa serenidade. Daí ser uma virtude tão excepcional. No "I Ching – O Livro das Mutações", um livro de conhecimento da antiga China, surgido "no período anterior à dinastia Chou (1.150-249 a. C.)", na tradução do sinólogo alemão Richard Wilhelm, o hexagrama 15 denominado "modéstia", tem posição destacada. Um trecho: "O destino dos homens segue leis imutáveis que têm de ser cumpridas. Mas o homem tem o poder de moldar seu destino, na medida em que sua conduta o expõe à influência de forças benéficas ou destrutivas. Quando um homem está numa posição elevada e é modesto, ele brilha com a luz da sabedoria. Quando ele está numa posição inferior e é modesto, não pode ser ignorado". Essa é a modéstia que me empolga. Aquela que, em vez de enfraquecer, fortalece. Que não pode ser ignorada, porque sobretudo corajosa, um paradigma que às vezes incomoda os circunstantes. Ela é, pois, um referencial. E continuou, depois de um gole de água:
- Mas, o que parece certo é que a soberba é mais agressiva, mais ambiciosa, assustadora e predomina no mundo. Eu sei disso porque convivi nesse mundo de competição e posso dizer que combati a soberba com a soberba. Sendo a soberba uma não virtude ela tende a manter as desigualdades subestimando ou minimizando as virtudes do respeito ao próximo, da honestidade, da lealdade, do altruísmo. A modéstia contrapõe-se à arrogância e à violência. Proponho, pois, um mundo "modesto"? Uma utopia? Trazer o céu para a terra? Não é bem isso. Seria uma impossibilidade. Sabemos que nosso mundo é naturalmente o mundo das desigualdades. Com ela, a modéstia, cultivada numa permanente autocrítica do indivíduo, possivelmente fizéssemos o mundo apenas um pouco menos desigual, um pouco menos doente. Com mais amor, mais amizade, mais lealdade, mais altruísmo.
Depois de uma pausa, olhando fixamente para seus ouvintes, em cada rosto, solenemente:
- Mas, não pensem os senhores que cheguei a esse nível de "modéstia". O que acabei de lhes relatar é apenas uma aspiração pessoal que tenho em mente. Não sei se chegarei um dia a tanto.
Essa foi a última resposta que Roberto deu. Acenou para todos e exclamou: Paz! Ao sair foi rodeado pelos seus ouvintes, recebendo-os com um sorriso e apertos de mão.