22/11/2009

A SABEDORIA DOS RIOS















“A mata, templo sob azul e a límpida nascente
Permitiam-lhe saciar n'Alma adormecida,
Inspiração profunda no mundo perecida
Intuindo orações de elevação crescente.”


Para a resenha (parcial) do livro "Mistério das catedrais" de Fulcanelli, acessar:


Texto ampliado

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 Esse trabalho de atravessar viajantes como balseiro também com resultado revelador, se conhece no livro “Sidarta”, de Herman Hesse, autor alemão que, na década de 60 influenciou jovens e não tão jovens com suas idéias de desapego a qualquer doutrina. Hesse recebeu o Prêmio Nobel em 1946 e, para muitos, fora um sábio.

Sidarta era um jovem que certo dia resolveu deixar a casa de seu orgulhoso pai, um brâmane, para ele próprio, buscar a sabedoria.

Saindo pelo mundo com seu amigo Govinda, viveu todas as experiências mundanas até que, envelhecido, procurara a companhia de um “simpático” balseiro que certa vez o transportara. Com ele passa Sidarta a conviver e trabalhar.

E Sidarta, incentivado pelo amigo balseiro (Vasudeva) passa a ouvir a voz do rio (“O rio sabe tudo e tudo podemos aprender dele”). E pergunta um dia ao velho amigo:
“O rio tem muitas vozes, um sem-número de vozes, não é meu amigo? Não te parece que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e a de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?”

E assim, vivendo humildemente, substituindo seu amigo balseiro que encontrara, à beira do rio, a sabedoria e se retirara para a floresta, foi paulatinamente encontrando ele próprio sua interioridade e sua paz.

Mas, faria uma revelação importante para seu amigo Govinda que o reencontrara, sobre a sabedoria: “Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la, podemos vivê-la, podemos consentir ela nos norteie, podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la.”

Tal se dá, certamente, porque a sabedoria é uma experiência pessoal, interior, intransmissível. O mesmo não se dá com o conhecimento.

Assim, ousei colocar lado a lado esses dois personagens tão semelhantes que, verdadeiramente, destacam o vigor místico dos rios, fonte de batismos, com sua cadência harmoniosa, sua voz, seu ir sem volta mais sempre presente até o fim de seu curso, culminando no seu trajeto majestoso em alimentar canais maiores num processo inexorável de transformações.

Por isso, sobre a água, encerro com São Francisco, valendo-me de um trecho do “Cântico do Irmão Sol”:
“Louvado sejas tu Senhor pela irmã água / que é tão útil e tão sábia / preciosa e casta”.



Foto 1: Parque Nacional Canaima - Bolivar - Venezuela. Foto de Alberto Corona (corona.blogia.com)

Foto 2: Imagem de São Cristóvão - azulejo - Igreja Matriz de Rio Tinto - Concelho de Gondomar - Porto / Portugal


15/11/2009

ÉVORA E SEUS ENCANTOS


Tenho Portugal comigo com muito carinho. Não sei se pela língua ou por gestos educados que recebi nas duas vezes que lá estive.
Quando se faz uma viagem ao exterior e se escreve impressões sobre determinada cidade ou país, são como retratos instantâneos. Tudo pode mudar no dia seguinte. Évora me marcou muito e explico nestas linhas

Évora, olhando-se o mapa de Portugal, fica a direita de Lisboa, um pouco mais ao sul. Não dá, de ônibus, duas horas de viagem. O país é pequeno significando que lugar algum é muito longe.









Cidade pitoresca de “terras lusitanas”, cheia de monumentos históricos, bastando citar que ali remanesce, construído no século II, pelos romanos, ruínas dum templo à deusa Diana.

É a cidade cercada por muralhas, estas construídas entre os séculos XI e XII.
A visitação aos inumeráveis monumentos é até fácil pela proximidade entre eles.
Limito-me, porém, a dois: a igreja de São Francisco e a “Capela dos Ossos” (sob outro enfoque, já me vali das informações ali colhidas em outra crônica – “Dos sem religião” de 27.02.2009):
Tenho certa admiração pelo santo que dá nome à igreja. Na sua entrada, numa pequena placa, lê-se a seguinte mensagem escrita por Santa Tereza de Jesus:

“Nada te perturbe,
Nada te espante
Tudo passa
Deus não muda e a paciência tudo alcança
Quem Deus tem, nada lhe falta
Só Deus basta.”

Não sei se, motivado por essa “recepção”, o caso é que, chegando à sacristia – não havia ninguém – tive aquela sensação muito comum quando damos um vexame, enrubescendo o rosto. Essa eclosão fora inspiradora, algo parecido com o que sentira quando, havia poucos anos, visitara o túmulo do santo em Assis, na Itália.
Saí da igreja ainda com aquela sensação e, ao lado, entro na “Capela dos Ossos, construída por franciscanos no século XVI na qual, nas paredes internas, estão incrustados cinco mil crânios humanos e, nos pilares, por ossos dos membros inferiores. Todos esses ossos foram obtidos em cemitérios precários que existiam ao lado de diversas igrejas.

E no pórtico, no alto, se lê: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.

Claro que tal capela constitui-se numa evocação anti-vaidade, em linha com o que praticara e pregara até exacerbadamente São Francisco já que, no final, tudo se reduz ao pó para não dizer, ossos. Tal pode ser meio macabro, mas é, sem dúvida, uma sacudida pró humildade. Os ossos lá estão...
Évora, pela sua “idade” tem, também, suas vielas estreitas e desertas.
Numa delas, arriscamos um restaurante simples, descoberto ao acaso, numa quebrada, uma placa indicativa mal escrita. No seu interior, baixa iluminação, muito própria de filmes “noir”, mesas de madeira escurecidas. Serviço aceitável. De entrada um vegetal temperado com puríssimo azeite de oliva. Pareciam grandes feijões verdes. Eram favas. Fui...
Daí, seguindo por aquelas ruelas, chega-se à praça do Giraldo, a principal da cidade, movimentada, turistas usufruindo das mesas no centro dela. Idosos, muitos, relaxavam e falavam nas velhas edificações do outro lado.

Relata o escritor Laurentino Gomes, no seu best seller “1808” que em Évora, as forças de Napoleão praticaram “duríssima repressão”, diante da resistência inútil dos seus moradores aos avanços das tropas comandadas pelo general Loison: “Homens, mulheres, crianças e velhos foram caçados sem dó nem piedade pelas ruas, que ficaram banhadas com o sangue de mais de 2000 mortos numa única tarde.”

Bastara descer uma ladeira qualquer e voltamos à rodoviária. Não me lembro no caminho de ter encontrado qualquer transeunte em toda sua extensão.
Na rodoviária, modesta, os banheiros eram vergonhosos. Bacias turcas imundas afastavam inapelavelmente homens e mulheres de seu uso. Aliás, na Europa, na média, não são os sanitários muito promissores até mesmo nos pontos turísticos bastante visitados.
O que ficou de Évora, porém, foi aquela sensação de paz, algo das vibrações que talvez a história, os seus mortos e o clima evoquem de modo imperceptível, mas que de alguma maneira são captadas pela mente desarmada. Sutilmente.

(Na crônica de 14.06.2009 escrevi sobre Coimbra, a Universidade e D. Diniz)

GIRALDO EM ÉVORA
(Grafia original)

"Foi esta Cidade conquistada aos Mouros...e no ano de 1166 a recuperou um nobre Cavaleiro…chamado Giraldo sem Pavor…e alguns deliquentes, com os quais vivia na serra de Montemuro, exercendo latrocínios, que por serem em forma de guerra, ficavão menos indecorosos.
…e estando perto da Torre da Atalaya se adiantou mais dos seus companheiros… Foy subindo Giraldo pela parede…chegou ao alto , e lançou a Moura abaixo, e entrando na torre degolou o Mouro…e trouxe a sua cabeça com a da filha a seus companheiros, que foi bom prognostico da vitoria, que depois alcançarão.
…um homem a cavallo…armado todo com uma espada nua em uma mão, e na outra duas cabeças de homem, e mulher, aludindo a esta façanha de Giraldo, donde teve principio sua restauração, e liberdade."

P. António Carvalho da Costa
COROGRAFIA PORTUGUEZA
Tomo Segundo 1708

Fotos pessoais:

1. Praça do Giraldo - Évora
2. Capela dos Ossos - Visão interna: as paredes porosas são constituídas de crânios e ossos

03/11/2009

ENCONTROS E DESENCONTROS





















A pequena empresa onde trabalhava passava por sérias dificuldades. Havia a necessidade urgente de um vendedor dinâmico que enfrentasse o mercado reticente para o produto ofertado (venda de anúncios).

Um dia, inesperadamente, esse vendedor apareceu. No começo, como quem pouco quisesse, com postura humilde, propôs-se a desenvolver novos clientes.

Com o passar dos dias, seu trabalho começou a dar resultados e, a cada êxito, sua personalidade ia se modificando na mesma proporção.

Passou a pedir pequenos adiantamentos por conta de comissões. 

Esses adiantamentos foram subindo de valor, chegando o momento em que a situação tornara-se insuportável.

Todos na empresa passaram a "dormir e acordar" com ele. Era envolvente, convincente, com fortes marcas de mau caráter. Era tênue a linha que o separava da gatunagem pura e simples. Talvez fosse contido pela religião que afirmava professar. Ele conseguira ser a preocupação número um de todos. Eram comuns comentários como:

- Ontem "fui dormir" com o M.., sonhei com ele e "acordei" com ele!

Essa opressão psicológica que ele exercia, por um fenômeno qualquer de sua personalidade, tirava algo de todos. Sua presença tornara-se insuportável, ‘vampiresca’.

Alguns meses, quando o clima se tornara de tal ordem negativo, num daqueles estouros inevitáveis, um murro na mesa, de vez em quando necessário, foi posto a correr.

Muitos anos se passaram. Um dia, no centro de São Paulo dei de cara com ele. Tentei evitá-lo, mas ele fez questão em se aproximar. 

Disse apenas:

- Olha, criei juízo...

Balbuciei qualquer coisa, perplexo com a afirmação, logo ele a quem expulsara do ambiente para bem de todos, de mim principalmente. Que tipo de juízo criara? Como poderia ter extraído de si aquela sua marca opressiva? Que reflexão fizera? Sem mais uma palavra, desviou-se e se foi. Quem sabe, realmente "criara juízo". Jamais o esquecerei, porque ele significou na vida de algumas pessoas e na minha própria, por certo tempo, um desencontro. Aquele que finge dar, mas que só tira.

Há pessoas que, efetivamente, num dado momento, entram na vida de outras, provocando grandes provações e dissabores Às vezes de forma inexplicável. E depois desaparecem, se vão, da mesma forma como vieram, deixando, porém, o gosto amargo da lembrança.

São os desencontros. São as pedras que rolam, se chocam e se batem. Mas, não são somente pedras que rolam e se batem.

Há momentos que elas se aproximam, aquelas pessoas que nos momentos mais difíceis também de forma inexplicável, se apresentam e fazem um bem imenso a outras, um simples gesto, falando qualquer coisa oportuna que enleva, que recupera.

Uma palavra pouco machista nos dias de hoje: a ternura. Isso mesmo! É o que algumas pessoas transmitem, sem afetações, com sinceridade e de tal ordem que muitas vezes somente a gratidão não é suficiente para compensar as benesses recebidas. E o mais curioso é que não se dão conta do que fizeram.

São os encontros. Os reencontros. O retorno a algum passado que parece vivido mas perdido, quem sabe, nos séculos, no éter.

Quando faço uma reflexão dos desencontros e encontros, chego à conclusão que nesta vida atribulada, até agora, conto mais encontros, reencontros. Que permanecem em minha mente como momentos preciosos, de amizade. Quanto de amor há na amizade?

Se os desencontros foram maiores, tento não me convencer disso até porque tenho consciência de minha obrigação de perdoar e relevar. Difícil, mas ver o lado bom do atrito das pedras.

Foto: abracadabra.weblog.com.pt

25/10/2009

ESTADOS UNIDOS, UM SENHOR PAÍS



































Foto 1: A onda do açaí nos Estados Unidos. O cartaz apontado pelo meu filho Silvio, se ampliada a foto, revelará os seguintes dizeres: “Now available – AÇAI ENERGY – Brazilian Super Fruit”. Exposta num restaurante de estrada entre Nova York e Filadélfia
Foto 2: Visita a Lincoln Memorial (Washington). Eu e minha esposa Ana Rosa.
Foto 3: Naquela linha de aproveitar tudo o que possível a estatua da Liberdade, fotografada “a vivo” nas proximidades de sua ilhazinha (Ilha da Liberdade), pelo Rio Hudson (Nova York). A estátua possui 46,5 metros de altura, pesando 24635 toneladas e foi um presente da França aos Estados Unidos em comemoração ao centenário de sua independência.



Pela segunda vez estive nos Estados Unidos, pais que admiro. A primeira vez foi por conta de atividade profissional. Lá fiquei por 35 dias. Desta feita, há pouco, só alguns dias, o suficiente para apreender sua atmosfera num momento de crise. Sobre esse aspecto, escrevi no portal www.votebrasil.com, “edição” de 14.09.2009.
Normalmente, em qualquer viagem ao exterior – e eu já visitei 16 países entre América do Norte, do Sul e Europa -, há que aproveitar sempre com bastante atenção os aspectos turísticos de tal ordem que dessas viagens – além da vaidade (epa!) de afirmar “eu já estive lá” – fiquem imagens de experiências que realmente valham a pena reter.
Hoje, de todos esses deslocamentos ao exterior que tive a oportunidade de viver, só guardei fragmentos o que me leva a questionar se valeu a pena tantas horas nas desconfortáveis viagens de avião, nas suas poltronas minúsculas, cotovelos com cotovelos. As fotos que poderiam significar lembranças, com o passar do tempo ficam inidentificáveis.
Nesta última viagem aos Estados Unidos, em setembro último, estive atento a notícias do Brasil. Nada e em certos setores da tradicional ignorância americana o Brazil é praticamente desconhecido.
Na Filadélfia, faço duas perguntas a uma americana comum provinda do estado de Arizona. Ela sabia, pelo menos, que no Brasil se falava português.
- Por favor, o que a senhora sabe do Rio de Janeiro?
Silêncio constrangedor.
- E do Lula?
O mesmo silêncio.
Quanto ao Rio de Janeiro, é possível que a atenção dessa senhora do Arizona tenha sido despertada pelos recentes acontecimentos nos morros e favelas cariocas, com mortes e derrubada de helicóptero da polícia, que obteve repercussão internacional.
Um consolo: na vista do Museu de Artes da mesma Filadélfia, um segurança negro, de baixa estatura, ao saber que éramos do Brasil, mencionou:
- Oh, yes, Rio de Janeiro, samba.
Nada mais.
Digam o que disserem, mas sou meio “chegado” nos Estados Unidos, mas não voltarei mais por lá, salvo alguma grande “mamata” que surja do éter, até porque não aceito passagem área do Senado. Difícil, hem!?




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18/10/2009

O HOROSCOPISTA


Por muito tempo me diverti ao lembrar dum velho jornalista que conhecera tão de perto e que dirigia um jornaleco semanário que tinha lá seus encantos, porém. Eram aqueles tempos heróicos em que a composição era feita nas linotipos.

O velho jornalista tinha um perfil todo próprio: baixinho, desmazelado - diziam que meio avesso a banho - irreverente e desbocado.Tinha muitas manias: a principal era rolar nos dedos como se fosse uma bolinha de gude, um pedaço de chumbo que gravara texto rejeitado.

Certo dia resolveu que o seu jornal teria um horóscopo. Depois de muito procurar, não encontrando um horoscopista ou um astrólogo no lugar, resolveu que ele próprio, semanalmente, produziria o horóscopo. Semanas depois, o primeiro horóscopo foi publicado, assinado pelo estranho nome de "Monsieur Abidul - o astrólogo internacional", tudo muito bem feitinho e organizado, com os símbolos do zodíaco e tudo. E, assim, a cada semana, lá estava o horóscopo fresquinho, regendo toda a semana seguinte dos leitores. Mas, depois de um tempo, aquele exercício de horoscopista estava lhe dando cansaço e tédio porque passara a ser um compromisso inadiável. Havia o espaço a preencher. Já não agüentava mais "capricórnio, cuidado com amores inesperados, mantenha-se vigilante !", "virgem, prepare-se, você pode receber pequena fortuna !" e assim por diante.

Até que, no minuto final de fechar a edição, cheio de preguiça, manipulando nos dedos um pedaço de chumbo de gravação que saíra defeituoso da velha linotipo como se fosse um bolinha de gude, todas as previsões dos signos foram trocadas: as de touro, foram parar em virgem, de balança em câncer, de capricórnio em áries, de áries em capricórnio e assim por diante. E o horóscopo foi assim montado por semanas seguidas.

Numa manhã de segunda-feira – o jornal circulava aos domingos - o telefone da redação toca. A voz feminina pediu para chamar o horoscopista. O estafeta sonolento que atendera insistiu que o tal Monsieur não trabalhava no jornal.

- Como não? - já impaciente, a leitora. É ele quem faz os horóscopos!
Acordando como se levasse um balde de água fria, o estafeta tapou com a mão o fone e chamou o diretor:

- Diretor, tem uma mulher aqui querendo falar com o tal do Monsieur Abidul.
Meio surpreso no primeiro segundo, mais que depressa, estirou-se torto na cadeira, pé direito apoiado na última gaveta da mesa gasta onde se espalhavam as provas das páginas da edição do último domingo, afinando a voz, respondeu num sotaque misto de francês e inglês, tudo ridículo e risível:

- Bien, como posso ajudarr o senhorra ? Here é o Monsieur Abidul?

- "Seu" Abidul, suas previsões estão muito estranhas. Tenho certeza que no mês passado houve no meu signo um horóscopo idêntico ao de ontem. Minha filha leu o horóscopo de seu namorado, que é de leão com as mesmas previsões feitas para o seu próprio, de virgem, da semana passada. Como se explica isso?

Sem nenhum constrangimento, o diretor mantendo aquele sotaque híbrido, risos contidos à sua volta, respondeu marotamente:

- Oui, a senhorra. nunca ouviu dizerr que os astros e as stars se mexem no céu. Órra, os horoscôpos tem a mesma prrevison when os astros girram para o mesmo lugarr.
Ao que a mulher respondeu:
- O que gira é sua cabeça, Monsieur Abe... não sei o quê, seu charlatão! Seu sem-vergonha! - e bateu o telefone.
O diretor perplexo manteve por alguns segundos o fone na mão, boquiaberto, enquanto seus óculos de lentes riscadas escorregavam das orelhas suadas. Não pôde conter a ruidosa gargalhada que ecoou por toda a redação e oficinas. Mesmo não entendendo nada, todos riam alto como se a gargalhada do diretor fosse, por si só, uma grande piada.

Na edição seguinte o horóscopo deixou de ser publicado, com uma nota da direção do jornal simplória e curta no canto direito da primeira página: o astrólogo havia sido demitido porque "descobriu-se que era um charlatão".

03/10/2009

MEUS TEMPOS DE BULLYING











Cartaz do filme "Os Brutos também amam" (Shane)









Há tempo para tudo e tudo passa com o tempo. Essa frase de efeito me faz pensar em muitas coisas e até na palavra bullying que trata do fenômeno odioso da agressão gratuita que se dá no ambiente escolar e não só. Pequenas gangs ou valentões “elegem” alguns colegas de classe ou da escola e passam a infernizar suas vidas. Diariamente.

Bully, do inglês, significa brigão e como verbo, ameaçar, amedrontar. Então, seria ameaçando, amedrontando.

Nos meus velhos tempos de ginasial me deparei com essas situações. Vivi essa experiência odiosa.

Em algumas oportunidades fui vítima do bullying.

A que mais me lembro, refere-se a um sujeito sempre acompanhado de outros dois ou três, e fui eu o “eleito” para ser sua vítima. Era tapa na cabeça antes da entrada nas aulas e durante as aulas quando distraído o professor, rasteiras e por aí seguia. Por dias, semanas e semanas.

Era um tormento minha chegada à escola. Tinha lá os meus medos do que poderia ocorrer se eu reagisse.

Até que um dia, no limite do insuportável, ao se aproximar para mais uma das suas à minha chegada, eu o empurrei violentamente. Ele caiu sentado, sob o olhar perplexo dos seus colegas, na verdade, uma ganguezinha. Todos riram.

- A seu fdp. Te pego na saída, disse ele raivoso e envergonhado.
Aquela manhã foi de pavor. Rezava para que ele fosse embora.

Na saída, do lado de fora do portão, lá estava ele me esperando. Toda a classe sabia o que viria. Um espetáculo de luta livre ao ar livre sob o sol ardente.

Eu naqueles tempos difíceis usava sapatos com solado de pneu, pesados, pois.

Fomos para um terreno próximo com farta assistência nos seguindo entusiasmada.

Descobri naquele dia que sabia brigar. Meu sapatão brilhou solto. Rolamos pelo chão de terra e poeira e por fim, meu bullyinista levou a pior. Abandonou a briga.

Claro que essa contenda teve repercussão na escola. Senti-me por uns dias o “Shane” de “Os Brutos Também Amam”, filme da década de 50 até hoje emblemático.

O sujeito no dia seguinte, hematoma num dos olhos, não conseguindo nem mesmo disfarçar as dores nas pernas, disse que ia para a revanche mas sossegou, nunca mais se aproximou de mim. Nem sua turminha.

Peguei fama de bom de briga, nada a me orgulhar. Meu orgulho é nunca ter começado uma. Se já levei a pior alguma vez? Bem, não se pode vencer sempre...

Quero deixar este depoimento pensando no que se passa hoje até mesmo jovens dando tiros de revolver para "resolver" o bullying de que é vítima. E outros casos desse naipe e graves.

Há que serem apoiados aqueles que são vítimas do bullying. 

Vigilância permanente nas escolas para coibir a agressão física ou moral. E a atenção dos pais. Para os “eleitos”, é infernal cada dia e um pesadelo o dia seguinte, o dia seguinte, o dia seguinte...

Atenção dos responsáveis pelos sintomas desses transtornosw. A malvadeza hoje supera qualquer vilão.

E nada de imitar Shane porque as consequências podem ser graves, irreversíveis

20/09/2009

INTUIÇÃO DESVENDADA





(Igreja de Santo Antonio / Praça do Patriarca - SP)

Foto: Antonio Erivaldo - fotolog.terra.com.br/toninho:424)


Daqueles idos brilhantes que já tanto me referi, retorno minhas impressões, lembranças a uma professora de filosofia, que em algumas aulas no colégio, promovia um exercício religioso: abria a Bíblia ao acaso e incentivava os alunos participantes a ler um versículo. Em seguida pedia que cada um desse sua interpretação.
Dizia que a Bíblia tinha diversos significados, verdades que se intuem segundo o merecimento do fiel, mas em especial a vontade sincera em compreendê-la. Nesses exercícios bíblicos uma certa comunhão do grupo com o texto objeto de reflexão, poderia inspirar novas revelações.
Essa professora, juravam no colégio, pertencia a uma ordem religiosa católica. Quando perguntada, com aquele respeito todo, ela não confirmava e não negava, apenas desconversava.
Mas, a forma como se trajava e agia, sempre de vestido longo, cinza claro, na altura do tornozelo, sem pintura, cabelos lisos cortados pouco acima dos ombros, olhar brilhante e sereno num rosto redondo, rosado naturalmente, não negavam alguma ligação com uma qualquer ordem religiosa.
Naqueles exercícios, algumas derivações bíblicas iam eclodindo, transbordando, não decorrentes do exercício intelectual, mas da intuição, da interioridade. Existia naqueles momentos, um (in) explicável sentido de paz.
Sempre me lembro dela e de outros. Onde andariam esses expoentes? Ainda vivem?


Já disse que me desviei para correntes do ocultismo. Algumas dessas correntes incentivam, conduzem o adepto a encontrar na sua interioridade o seu templo e sua religião. Há alguns conceitos universais ou religiosos que dão as linhas básicas de conduta. Assumidas essas, à medida que o adepto se esforça, mais ele se encontra e mais ele renuncia a certos valores mundanos. A conjugação da auto-compreensão, com a renúncia a certos (des) valores vai levá-lo a identificar sua espiritualidade.
Mas, isso não é fácil, porque o dia-a-dia o coloca diante de imensos desafios mundanos. Que também se constituem valiosas possibilidades de progresso, se aqueles valores universais forem preservados como norma de conduta. Mas, na contrapartida, tende a fazer esquecer essa busca eminentemente religiosa e espiritual que estaria latente no âmago de sua interioridade.
Fica mais fácil, pois, frequentar uma igreja no domingo. Naquelas horas que ali passa, exterioriza o fiel sua busca pelo divindade, se apoia nalguma santidade, num exemplo. E interioriza certas vibrações das orações, das pessoas que ali estão, também, buscando uma melhoria pessoal ou religiosa.
Certa feita, um tanto intranquilo por alguma coisa que já não me lembro, voltei a uma missa católica. Saí muito mais confortado, principalmente pelo congraçamento que houvera entre os fieis.
Todas essas confidências que me encorajei a relatar, vêm a propósito da emoção que sempre sinto ao me deparar com pessoas em oração.
Normalmente, quando em São Paulo, para suportar a poluição e o cansaço adicional que ela provoca, tenho por costume, parar um pouco na Catedral da Sé e, na sua meia-luz, fazer um pequeno recesso, observando as pessoas que entram e saem. Outro dia, fiz isso na Igreja da Praça do Patriarca (Igreja de Santo Antonio).
Homens e mulheres, simples ou bem vestidos, entram, ajoelham-se ou não, oram diante de uma imagem ou no próprio genuflexório e se retiram.
Não importa o tamanho da imagem. O que importa é a busca da graça, do calor espiritual que o gesto, a oração piedosa podem produzir. São aquelas, as imagens, apenas símbolos que levam à religiosidade.
Quanto a mim, enquanto permaneço estacionado sem enveredar para minha autorreligiosidade pelos motivos mundanos que me deparo a cada dia – boa desculpa, hem? - alimento muita simpatia por aqueles que, no recesso de uma igreja, numa hora qualquer do dia, exteriorizam sinceramente a sua, sem exacerbações e exageros. Apenas um momento de reflexão e oração.
A propósito, já nem sei quantas vezes usei o trecho abaixo de uma poesia minha, cujo teor se perdeu. Vale mais uma vez para sintetizar o que quero dizer:


"A vida caminha pra frente
Sucedendo-se o dia-a-dia feliz ou triste,
Não há sequer uma garantia
Nessa seqüência de luta sem nexo (ou sadia ?)
Sinto que há nesse vai-e-vem
Valores interiores, superiores, sutis.
Como descobrir o que exprimem
Se os embates da luta me reprimem ?
Parece que essa luta sadia (ou doentia ?)
Não começa no sexo e termina na morte:
Há mensagens fortes nessa contradição
Que só a Alma silenciosa possibilita audição".

02/09/2009

ETÉREOS










(Imagem: borboleteando.blogger.com.br)



Fazer poesia, para mim, significa um desafio. Há momentos, raros, porém, que fluem elementos que me obrigam a produzir alguma coisa e, às vezes, dá certo.
Já disse um sem número de vezes que minha juventude foi (muito bem) vivida em São Caetano do Sul.
Com relativa proximidade à Serra do Mar, muitas vezes o nevoeiro que por ali eclodia, trazia algumas rebarbas na cidade. Em São Bernardo, havia dias em que a visão não alcançava além de cinco palmos, tal a espessura da massa branca.
Havia tardes de inverno, mesmo quando meio temperados, que o dia permanecia cinzento, com aquele vento frio que me levava a um sentido nostálgico, uma contradição, porque ao mesmo tempo uma fagulha de felicidade e alegria transbordava. Olhava para o céu fechado e me perguntava o que se passava comigo naqueles arroubos.
Tantos e tantos anos depois, não poucas vezes me vêm à mente aqueles momentos. Afinal de contas, hoje, mesmo não tendo muito a me queixar, o enquadramento da vida é diferente. Ela é dura de ser vivida. As indagações de agora e daqui para frente são nada além de desafios que me assaltam e se perdem sem resposta. Nada sei, pouco sei dessas transcendências.
E foi num dia assim, meio fechado, sem mais transmitir aquelas inspirações de outrora que escrevi ETÉREOS, num sentido de que a vida pode prosseguir mesmo quando já se chega, digamos, ao ocaso.
Etéreos é a que mais eu gosto.
A borboleta é a alma que busca nesses remanescentes, a inspiração para prosseguir absorvendo o que de bom resta para viver.



ETÉREOS

Nessa de desânimo
apatia
Não sei o porquê
de tal melancolia
(ou nostalgia?)
Desmedida

Sei não!
Cadê a Inspiração
os elementos Etéreos?
Clamo, pois, só, no (meu) deserto
Respostas não vêm
Ilusões não há (mais).

Miro margaridas murchas
(bem-me-quer, bem-me-quer!)
Que se preparam para semente
Sinto o sol...
mas não me aqueço.
Num momento, surpreso
confuso
Sinto o Etéreo, porém.

Uma manchinha azul
No éter
Vindo, chegando, esvoaçando!

Ora, uma simples...
Borboleta...azul!

Ela dança nos meus olhos
Solene, encantada, frágil
magnífica, rebrilhante...
E pousa, então...
na margarida
a mais desfeita
na gema amarela.
(apenas três pétalas ressequidas)

Apreendi logo
o valor da escolha...
Da borboleta azul
Etérea
tão tênue
tão efêmera
Bem vinda...

Porque na margarida
murcha
na gema
Ela sentiu a vida
(ainda)

Assim falava ela
a borboleta azul
Etérea
na minha nostalgia
(ou melancolia?)
Naquele dia...

22/08/2009

SIMPLICIDADES


Eu e minha cadelinha preta, "prisioneira".



















I – Soberbas e tédios

Profissionalmente enveredei para as relações trabalhistas. Ligadas à área de recursos humanos, elas “administram” conflitos internos e os de fora dos muros, as querelas de natureza jurídico-trabalhistas e sindicais.
Envolvi-me tanto com essa área que acabei escrevendo, digamos, um livro.
Na última e derradeira edição, depois de muitos anos de experiência em multinacionais, tantos seminários que em nada alteravam seus desvios porque geralmente dirigidos aos subalternos e não à cúpula dirigente a quem caberia, eventualmente, mudar alguma coisa, inseri um texto sobre administração de relações trabalhistas que tratava de três princípios: o da autoridade, da transparência e o da simplicidade.
Quanto a este último, coisa meio utópica, assim me referi:
“A simplicidade, pois, começa na maneira aberta de encarar os problemas, as indagações e, principalmente, as sugestões como se, a cada dia, todos pudessem aprender com todos. Claro que, nesse compasso, deve predominar o princípio da autoridade, que decide com participação. O autoritarismo decide isoladamente.”
Nos debates e conflitos que todas as empresas têm, muitas vezes me vi, naquelas reuniões tensas, sendo condescendente com aspirações dos operários e, na medida do possível, as defendia mostrando lados menos selváticos.
Raramente fora entendido por eles. Não poucas vezes, nas portas dos banheiros da empresa, meu nome escrito precariamente era mal adjetivado, claro que por não saberem esses detratores, o que se passava nos bastidores.
Encolhi-me perante posicionamentos gerenciais que entendia incoerentes a que me obrigava, obviamente, a suportar. Tédios, diante da soberba. E nesse quadro, quantas vezes cumpri decisões amargas. Só um demitido surpreendido conhece a amargura da demissão.
Por tudo isso assumi uma dose de simplicidade pessoal, assim que pude. Hoje, a pratico até na profissão. Salvo situações específicas, não me inibo de sair pelos fóruns de calça “jeans” e sapato largo sem meias, “desafinado” perante advogados elegantemente trajados.
Mas, alguém me aponta o dedo e diz que no meu modo “simples”, há uma dose velada de arrogância que transpira. Tenho me questionado sobre isso. Reflito.

II – O ideal numa ficção

Valho-me, então de um personagem fictício de longa crônica que, aliás, está na íntegra neste espaço em edições anteriores.
O antigo executivo, que chamarei apenas de R, um dia, bem de vida, larga tudo e vira pescador medíocre no litoral de São Paulo.
Reformulei o texto e o resumi. Ao ser indagado sobre sua atitude modesta numa palestra para humildes ouvintes:
- Mas, o que parece certo é que a soberba é mais agressiva, mais ambiciosa, assustadora e predomina no mundo. Eu sei disso porque convivi nesse mundo de competição e posso dizer que combati a soberba com soberba. Sendo a soberba uma não virtude, digamos, ela tende a manter as desigualdades subestimando valores, as virtudes da lealdade do altruísmo. A modéstia contrapõe-se à arrogância e à violência. Proponho, pois, um mundo “modesto”? Uma utopia? Trazer o céu para a terra?
Não bem isso. Seria uma impossibilidade. Sabemos que nosso mundo é naturalmente o mundo das desigualdades. Cultivada, porém, numa permanente autocrítica, possivelmente fizéssemos o mundo apenas um pouco menos desigual, um pouco menos doente. Mais altruísta.
Depois de uma pausa, olhando fixamente para seus ouvintes, em tom solene:
- Não pensem os senhores que atingi esse nível de “modéstia”. O que acabei de lhes relatar é, sobretudo, uma aspiração pessoal que tenho em mente. Não sei se chegarei um dia a tanto.
Essa foi a última resposta que R deu. Acenou para todos e exclamou: paz!
Ao sair foi rodeado pelos seus ouvintes, recebendo-os com um sorriso, aqueles mesmos que, quando executivo, dificilmente dele se aproximariam.


III – A soma de todos os valores

O meu maior despojamento, talvez, naquele sentido de desapossar-se de vaidades, dá-se sob um pé de atemoia num banco de granito que instalei. Foi nesse canto que consegui ler “Guerra e Paz” de Leon Tostoi, nas suas mil e tantas páginas
Tenho carinho pela atemoia porque ela floresceu de semente que plantei e acompanhei desde o primeiro brotar. Seus frutos são amanteigados e “valem por um almoço”.
Levanto-me e vou a dois passos ao acolhimento do pé de amora. Colho algumas já maduras. Quem na infância não comeu amora do pé, faltou alguma coisa à infância.
Amoreira. Humildade. Contém “amor” em seu nome. Daí as “amor-as”. Em gotas.
Ao lado dela um é de romã dando frutos – cuja muda transplantei de uma pequena saliência numa calçada qualquer -, um de pitanga graúda. Do lado esquerdo dois pés de mexerica que produzem muito. À frente, um pé de manga “tomy” em flor que promete mangas temperadas com açúcar da melhor qualidade. Ao seu lado uma árvore sem identificação, cujas folhas amassadas cheiram fruta, mas que se resignam a espocar apenas umas flores bem modestas e pequenas. Também a transplantei de cantos de calçada. E uma ameixeira.
Aos meus pés minha vira-lata preta, ainda ativa embora já com seus 17 anos. Verdadeira prisioneira sobre quatro muros, embora tenha espaço para se movimentar nesse quintal, esfregar-se na grama. Nas suas idas e vindas sedimentou trilhas arredondadas, desvios e só por essa “rota” caminha.
Estou aqui com ela, penalizado porque reconheço sua angustia de ali permanecer, com pouco carinho e a festa que faz quando vou visitá-la. Tenho ido menos pelos meus compromissos profissionais meio moído pelo cansaço e desgastes.
Mas, se vou, é só amor que transparece de seus olhos já não tão brilhantes rodeando o banco de granito esperando alguma ação minha, além do agrado que não renuncia.
Comecei a levá-la a passear nas redondezas. Quero retribuir um pouco seu amor incondicional e não ficar pesaroso se ela se for...antes de mim.
Nesse meu quintal de uns 450 metros quadrados, só me deparo com plantas que dão frutos sem nada pedir e uma cadelinha pronta para retribuir tudo o que puder ainda que pouco receba.(Leia "Vida de cachorro" em http://prosaeversodeboteco.zip.net)

Estou ali rodeado de exemplos vivos de simplicidades, humildades, amor desprendido. E paz.

26/07/2009

CRÔNICA PAULISTANA




















Foto: www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/sao-paulo/catedral-da-se.php


CATEDRAL DA SÉ - SP

Já faz algum tempo, obriguei-me a excursionar pelos principais pontos turísticos de São Paulo, porque me desatualizei dela.
Haveria que encontrar na velha São Paulo algumas relíquias dignas que amenizassem esses tempos amargos. Encontrei sim, mas é inevitável reviver os antigos encantos.
Não faz muito nos rumos de São Caetano, perdi-me entre aqueles viadutos no final da avenida Nazareth, no Sacomã e tomei o sentido da Estrada das Lágrimas.
Via feia e sem cor, sem verde. Já cedo, havia lá na frente uma batida de carros, fazendo o trânsito mais lento na estrada tão estreita. Acordei dessa letargia do monóxido de carbono já com os pulmões desabituados de tanto peso, bem defronte à Igreja de Santa Edwiges, a padroeira dos pobres e dos endividados.
Essas impressões me marcaram tanto que saiu o seguinte poema:

Orquídeas e beija-flores

Eis-me aqui amargurado e pensante
Mal respirando nesse clima insano,
Tudo que exala desse meio paulista urbano
Envolto na fuligem dessas chaminés rasantes.

Que mundo é este de dura resistência!
Que mundo é este de intensa incerteza
Que mesmo à reação da pródiga natureza,
Ampliam-se os desertos por abusada inconsequência?

Que mundo é este de ganância e escuridão,
Que princípios postos pouco ou nada valem?
Se de tudo que inspira sucumbe, porém,
Nessa sanha caótica de destruição?

Reajo impotente qual um conformado perdedor
Sonhando acordado, no tráfego, quietamente,
Vendo desabrochar orquídeas no fundo da mente,
Visitadas por beija-flores em doce torpor.

E assim, no interior de minh’alma triste
Revela-se que tais doces criaturas, parece,
De Deus, são o preferido passatempo, uma prece,
E somente por essa dúvida a esperança persiste.

Esses instantes de valor e Paz perdem-se na poluição,
Sobressaltado não pela água límpida irradiando o sol,
Mas pela barulhenta abertura do farol,
Cujo verde não é o das matas que clamam proteção.


Arrependi-me de nunca ter conhecido o interior da igreja, porque em frente, do outro lado da Estrada das Lágrimas, havia um barranco onde era possível se abastecer de água potável de uma nascente.
Geralmente ao anoitecer, enquanto os recipientes enchiam lentamente, ficávamos mirando o céu estrelado, quem sabe flagrando o risco brilhante duma estrela cadente. Muitas vezes elas deram o ar da graça. E no instante, o augúrio forte de um desejo profundo lançado no éter. Naqueles tempos não tão distantes. Ah, as nostalgias!
Hoje, por aquele lado onde havia a bica, se ingressa na Favela do Heliópolis, uma das maiores de São Paulo. Haverá a santa Edwiges que se desdobrar muito em ouvir os pedidos de seus moradores vizinhos...
Uma outra lembrança forte era visualizar a Praça da Sé da esquina da rua Tabatinguera (em Tupi, "local de muito barro e abandonado"), quando havia uma franca separação com a Praça Clóvis. Era uma espécie de porta pela qual se descobria a leveza da grande cidade. Hoje a Praça da Sé reúne todos os tipos humanos, entre camelôs, desocupados e até turistas.
Pelos mesmos motivos – ou talvez porque passei pelo tempo – não tenho mais o encanto em caminhar lentamente pela Barão de Itapetininga, observando rostos que passavam por mim, dando-me consciência de minha individualidade esse sentimento de aparente separação entre os semelhantes. Aparente, apenas. Mas, o tempo passou. Sinto um ar de indiferença, de angústia, um obstáculo à solidariedade silenciosa que eu pressentia naquelas andanças despreocupadas. Uma cidade circunspeta!
Não perco a esperança, porém. Volto-me, como sempre faço, à serenidade da Catedral da Sé.
Num desses dias de fuga descobri que no seu pórtico, há imagens de animais da fauna brasileira, do tatu, do tucano, da garça e do lagarto. Há figuras em relevo da uva, do cacau, do milho, do café, do maracujá. Um sentido de brasilidade naqueles idos, transcrito nas reentrâncias do igreja que começou a ser construído em 1912 e somente inaugurado em 1954, nas comemorações do 4° centenário de fundação da cidade. E, pelo que se vê da devastação, um alerta à preservação.
Na cripta estão os túmulos de (quase) todos os bispos e cardeais que comandaram a Catedral. Mas, esse local sob o altar-mor não assusta. Ao contrário, acalma. O mistério da vida e da morte que nos desafia lá está. O tempo que nos leva continuamente à grande interrogação: o sentido da existência...
Há dois túmulos que chamam a atenção:
O do cacique Tibiriçá que lá está porque muito ajudou na colonização paulista, aliado dos jesuítas, defensor das terras de Piratininga (aldeia indígena guaianá existente na região de São Paulo, chefiada por ele) contra os ataques de outros indígenas hostis. É proclamado como o primeiro cidadão de São Paulo de Piratininga.
O outro é o de Bartolomeu de Gusmão religioso jesuíta que viveu de 1685 a 1724. Nascido em Santos e falecido em Toledo na Espanha, esquecido, fora um inventor talentoso, tendo construído o primeiro balão (aeróstato) que subiu na atmosfera, impulsionado pela leveza do ar quente. Sua pioneira “máquina de voar” surpreendeu a corte de Dom João V, em Portugal.
Estaria esse túmulo deslocado daquele ambiente?
Pois não é na Catedral de Florença que se instala o túmulo de Guglielmo Marconi, cientista italiano, não religioso, bastante ligado ao fascismo? Estarei enganado? Só que Marconi, para resumir, é o descobridor da transmissão sem fio – do rádio. E os agentes de turismo exaltam os seus feitos na visita a essa Catedral.
Mantinha um certo peso na consciência por me deslumbrar pelas cidades européias. Daí a volta à minha cidade maltratada
Essas relíquias, pouco valorizadas ou desconhecidas são seus elementos extrínsecos. Intrinsecamente há uma leveza naquele ambiente, contrastando com a agitação da cidade lá fora, porque, sobretudo, na sua estrutura tão cheia de entrâncias e ornamentos, de belos vitrais e altares é uma casa de oração. Democrática. Pessoas preocupadas e contritas lá se ajoelham humildes na oração.
Isto tudo me anima a sempre pensar em novos recantos disponíveis, belos, agradáveis, dessa cidade tão sofrida, assustada quanto trabalhadora.
E os há. Basta procurar.