14/02/2010

CAMARÕES





Detroit fotografada de Windsor - Canadá







Só tinha o que comemorar chegando ao fim da jornada profissional nos Estados Unidos. Cumprira com poucos baixos minha estada naquele país que aprendi a admirar. O último compromisso fora em Detroit, porque me convidara a visitar a Chrysler e que, na verdade, atendera ao meu “convite” com alguma relutância; optara por conhecer sua linha de montagem toda automatizada. Para mim, seria importante essa tecnologia algo cultural, porque havia trabalhado para essa empresa no ABC e a linha de montagem era longa, cheia de “estações” de trabalho até que, na outra ponta, o carro saia pronto.
No hotel, que transpirava luxo por todos os lados (não me lembro se no Westin), no último jantar subira até o teto no restaurante giratório, envidraçado, sofisticado, que permitia ver a cidade por todos os ângulos.
Nos dois dias de feriado que procederam à visita, visitara rapidamente Toronto, passando antes pela pequena London. Naquele dia e meio achei o Canadá mais lento, talvez exalando riqueza, expressão que ouvira no passado de um belga ao se referir ao seu próprio país.
Com uns dois amigos de última hora fizemos nossos pedidos e enquanto aguardávamos a comida, num copo imenso, foram servidos camarões temperados, brinde da casa.
Já meio cismado com frutos do mar porque havia anos assumira não comer carne de qualquer espécie, mas eram eles ainda uma forma de compor algum cardápio em situações especiais, comecei por comer camarões.







Num dado momento pergunto, apontando para alguns exemplares no meu prato:
- O que são estas linhas pretas aqui, encima dos camarões?
Um dos que ocupavam a mesa, me responde com ironia:
- São os intestininhos do bicho. Eles são os temperinhos do bicho.
Diziam que os camarões eram espécie de urubus minúsculos dos mares que se alimentavam de tudo o que apodrecia.
Meu estômago revirou, um assombroso sopro em forma de arroto exalou silencioso. A minha repulsão tornara-se impossível disfarçar.
Mal jantei, um macarrão temperado razoavelmente, apimentado. Seria a salvação, depois de comer por longo tempo pizzas adocicadas, fast food, catfish frito...
Os americanos não se alimentam bem, no dia-a-dia.
Até acho que o arroz e feijão constituem uma mistura alquímica.
Certa vez, em Veneza, anos depois, ao serem servidos frutos do mar, minha rejeição se acentuou ao ver camarões misturados com bichos que pareciam minhocas. Argh.

A última vez, aqui em casa, muito bem preparado, arrisquei comer camarão no coco e arroz, algo como uma especiaria. Pois, bem. À noitinha entrei num processo febril bravo que me deixou dois dias de molho.
E assim, hoje, todo camarão à minha frente me faz ver aquelas linhas pretas às quais fui apresentado e degustei em Detroit com um vinho branco da melhor qualidade.
Não será preciso dizer que os frutos do mar foram também abolidos do meu cardápio. Para sempre.

07/02/2010

ALUCINAÇÕES PAULISTANAS (III)












Barão de Itapetininga (São Paulo).
Foto:www.vivaocentro.org.br/noticias/arquivo/04120



Continuação (última parte)


Há palavras que encerram a própria ação. Da sua desconsolação, houve na rua a consolação – ação de consolar. Recuperou-se. Antiguidade - idade antiga.
Recitou uma estrofe:
Volto-me para mim, miro-me n’alma
Medito no todo dessa realidade (?)
Insisto em desvendar a centelha calma
Mas, apenas intuo que já vivo antiga idade...


Nessas sensações alucinatórias, de vez em quando, no silêncio da sala de sua casa, já no começo da madrugada, sentia-se observado.
Olhava em direção à sala de jantar e do lado direito, na porta de acesso à cozinha, não foram poucas as vezes que parecera ter visto um vulto branco a espreita. Seria reflexo das lentes dos óculos que recebiam a claridade da luz acesa sobre sua cabeça? Ou o quê? Ou alucinações, apenas?
Sempre que tinha essa impressão batia aquela vontade de meditar sobre o evento morte e as coisas simples e inexplicáveis da vida. E nesses momentos vinha-lhe à mente um diálogo que tivera com um colega de trabalho que se proclamava agnóstico, num velório de amigo comum:
- Explique a diferença entre o Alcides deitado naquele caixão inerte e você aí de pé perplexo e emocionado. Considere que há dois dias, falávamos com ele no almoço. Hoje ele está lá, sem expressão, sem respiração, sem voz. Um defunto.
Ele apenas me olhou deu de ombros respondeu:
- Por isso sou agnóstico. Não me atrevo a explicar, só aceitar.
Era muito comum para o advogado, ao acordar de um sono profundo, sentir-se angustiado ao constatar que voltara a ser regido pela lei da gravidade, devendo carregar seu corpo denso, para lá e para cá, atrás de objetivos nem sempre agradáveis. Porque no sono, parece, a alma, o espírito ou o nome que se queira dar a essa luz que se apaga com a morte, desliza no éter sem peso, faz viagens distantes com liberdade e com a velocidade do pensamento.
Retornar à luta terrena poderia causar em momentos de ansiedade, um certo mal-estar. Esse contraste, dá uma idéia entre a possível leveza do outro lado e a vida dura deste lado, do lado que se julga ter consciência de tudo o que se passa em volta. Tudo vaidade de vaidades. Não se tem consciência de nada!
E nessas lucubrações, não faltara a “presença” de uma suicida, moça inteligente, com forte postura profissional e invejável cultura formal. Fora sua subordinada por alguns meses, na última empresa para a qual trabalhara.
Rosto que lembrava descendência nórdica, um quê da atriz norueguesa Liv Ullman, cabelos lisos claros, olhos castanhos claros, sorriso aberto e gestos delicados. Sua vida não fugia muito da média. Trabalhara em São Paulo, morando sozinha, visitava os pais quase que semanalmente e tinha bons amigos. Demonstrava alguma devoção religiosa, pendendo para o catolicismo.
No seu relacionamento profissional, porém, mostrava-se insegura. Insistia em lembrar os tempos em que fizera teatro amador. Daí, seus gestos teatrais, sua entonação de voz, sua pouca simpatia, seu artificialismo.
Meio reservada, somente depois de algum tempo, começou a se descontrair, embora, com alguma regularidade, revelasse momentos depressivos.
Certo dia, resolvera mudar sua vida profissional ou retornar ao que tivera antes. Aceitara proposta de trabalho em São Paulo, o que possibilitaria um convívio num outro ambiente profissional, mais "inteligente", dizia, no qual se dera melhor no passado.
Tempos depois, por razões de mercado de trabalho, fora demitida. Ficara desempregada, frustrando todas as suas expectativas.
Meses mais tarde, nas vésperas das festas de fim-de-ano, período em que a solidão bate forte porque o espírito natalino pode não ser apreendido por aqueles angustiados, na casa dos seus pais, tomando um velho revólver esquecido carregado parcialmente, fechou-se no seu quarto sem trancar, mirou-o contra o próprio peito e apertou o gatilho.
O tiro fora fatal. Atingira o coração. Nos segundos que se seguiram à sua morte, às pessoas que às pressas vieram em seu socorro ao estrondo, disse tenuemente que se arrependera e de que não queria morrer.
Apenas um momento de irreflexão, conduziu-a a um caminho sem volta.
O instinto de defesa é anulado, sobrepondo-se o sonho e a esperança do encontro da leveza num mundo no mínimo não tão denso e amargo como o seu. Por ruim que fosse, seria melhor do que a sua vida, teria acreditado ela.
Um tal gesto, porém, mesmo que tomado num momento de amargura e dor, exige uma imensa coragem e renúncia porque a viagem ao desconhecido tivera a hora antecipada. Certamente que não seria bem recebida para o local que deveria se apresentar porque desembarcaria antes da hora. Não haveria recepção.
Nesses casos, arrepiado com os vultos que via, sempre se perguntava que tipo de vozes interiores ouve o suicida no exato momento em que age contra a própria vida? Que vozes tão eloquentes são essas que suplantam o instinto primário da preservação? Se, ao longo da vida, há a preparação instintiva para a morte natural, aí incluída a acidental de qualquer natureza, quais os efeitos do suicídio no exato momento da passagem para o outro lado da existência?
Essas perguntas, ao longo do tempo, o afligiam muito.
Convencera-se haver uma transcendência que martela, conduzindo-o a aceitar o princípio da reencarnação. Porque, havia decorado a frase do "Bhagavad Gîtâ": "com a morte, não se perde nada daquilo que a alma adquiriu. As experiências que o homem fez nas vidas passadas, tornam-se instintos e incitam-no ao progresso, até inconscientemente."
Por longo tempo, aquela moça suicida passara em sua mente. Com ela sonhara, vendo-a escondida num canto sórdido acenando. Uma presença relativamente constante, especialmente nos seus momentos de solidão e calma.
Certa vez, num desses dias que o rosto da suicida viera à sua mente, quando cochilava em plena Catedral da Sé, quase vazia, encarando a figura de Cristo pendente, sempre, numa cruz, fez uma oração com palavras de paz e homenagens a ela. A partir daí, sua presença foi se tornando cada vez mais rara, mais rara, até desaparecer por completo.


Agora os ônibus estavam próximos trafegando pela Consolação, barulhentos e expelindo monóxido de carbono em seu rosto, as pessoas também próximas já não emitiam cores, apenas um semblante carregado e preocupado. Tudo voltara ao normal, passara a andar no chão duro daquilo que chamava realidade.
- Ao normal? Pensara ele, tentando esquecer aqueles momentos assombrosos e reagir.
Esses seus devaneios o assustavam, porque lembrara-se do que se passava com o príncipe Michkin no romance “O Idiota”, de Dostoievski ao pressentir e depois passar por um ataque epiléptico.
Fez a longa caminhada a pé com destino à praça da Sé.
Seguiu pela Barão de Itapetininga, para admirar por fora o Teatro Municipal no outro lado. Uma construção monumental pelos seus detalhes. Um dia estudaria com calma o que significara no seu todo a “semana de arte moderna” de 1922 que ali se fizera e que contara com a adesão de artistas e intelectuais, adeptos do modernismo, que se propagava na Europa.
Melhor ainda, dia desses conheceria o Teatro por dentro.
A Barão lhe fora sempre muito especial. Era nessa rua que tivera, havia anos, aquela sensação agradável de anonimato, de sua individualidade, de sua alma com a certeza de que muitos rostos com os quais cruzava pareciam ter essas mesmas sensações agradáveis. Essas sensações voltavam sempre que se assentava calmo numa rua movimentada qualquer, mesmo no calçadão próximo do seu escritório, ao observar homens e mulheres que transitavam. Mas, era na velha Barão que tudo acontecera e acontecia sempre com mais cores.
Cruzou o viaduto do Chá, saiu à direita pela Líbero Badaró rumando para a Praça da Sé.

A Catedral da Sé sempre fora para o advogado nas suas idas a São Paulo um porto seguro de repouso e meditação, naquelas tardes quentes nas quais a modorra prevalecia agravada pelo ar poluído.
Surgida a oportunidade, procurava o silêncio relativo da Catedral para receber suas vibrações harmoniosas como forma de minimizar um pouco a agressividade de São Paulo.
julgava-se um herege ao olhar impaciente a imagem do Cristo na cruz, com aquele rosto todo injuriado, sem possibilidade de dela se libertar. Pensava em Cristo, na igreja, de braços abertos, em forma de cruz, recebendo os fieis de boa vontade como vencedor e não como um eterno derrotado de cabeça baixa no crucifixo.
- Deixa pra lá. Esse meu pleito não encontrará guarida. E, ademais, não tem jeito. Entra ano sai ano, volto-me à serenidade da Catedral da Sé, pensou, com a cruz ou sem ela.
Sempre que saía da Catedral para a praça da Sé nos rumos da rua de São Bento, o encanto se esvaía. A praça mais conhecida de São Paulo, ponto central do metrô paulistano, estava deteriorada pelos botecos, pelos camelôs, pela sujeira de restos de frutas jogados pelos cantos das calçadas. Cheiro de urina nas muretas da praça.
Em outros tempos, quando havia perfeita separação entre a Sé e a praça Clovis, era um prazer mirar ambas num mesmo nível da esquina da Tabatinguera, como se uma porta se abrisse ali e por ela se entrasse na grande metrópole.
Já de volta nos caminhos do escritório, não poderia deixar de refletir sobre tudo o que passara naquela tarde.
Não percebeu qual fora o trajeto de volta ao escritório tais foram as perturbações e experiências vividas naquele dia.
Quando reassumiu sua consciência mundana, estava estacionando nas suas proximidades, vivenciado um instante de inspiradora serenidade.
Dando-se conta da volta ao comum, à rotina, à tranqüilidade relativa de seu escritório – seu reduto – apenas sorriu e, como se gesticulasse para alguém à sua frente, abriu os braços, deu de ombros e se ligou no sistema e na perspectiva de sobrevivência.
À noite, no silêncio da sala de sua casa, todos dormindo serenamente, com seus vultos à espreita reabriu o romance “O Idiota” e procurou nas suas centenas de página o trecho que tratava das impressões pós-epilepsia que o impressionara e que jamais esquecera:
“Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o resultado desse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de síntese de harmonia e da beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência?”.
Fechou o livro, e foi para o sono dos justos baixando a cabeça, mesmo no escuro espantando as sombras, seus fantasmas. Ora, ele não era epilético mas se perguntava se esses transes como experimentara na Paulista, não significariam “ascender à mais alta escala da vivência” mesmo para testemunhar a devastação e o perigo?

31/01/2010

ALUCINAÇÕES PAULISTANAS (II)

EXPLICAÇÃO
Como informei na primeira parte desta crônica, bastante longa, segue agora a segunda parte. Haverá uma terceira e última.




Consolação e os muros sobreados do cemitério








Foto: Antonio Erivaldo - http://fotolog.terra.com.br


A sombra na calçada do cemitério reconfortava. Já vendo por cima dos muros os altos de alguns túmulos que se sobressaiam pelo luxo e arte, pôde ouvir a conversa de duas senhoras bem idosas, bem vestidas, uma caminhando com dificuldade, apoiando-se numa bengala, falando em orar no túmulo de Antoninho da Rocha Marmo, por graças recebidas.
Que graças? Teriam fixado mais uma placa no túmulo do santinho sem tal galardão oficial lá sepultado?
De Antoninho, lembrava-se de alguns episódios. Ouvira uma história do “menino anjo”. Antoninho da Rocha Marmo, tuberculoso, consolava sua mãe informando que sua morte iminente era desejo de Deus. Para convencê-la – e se conseguisse a proeza, seria a evidência - ordenou que um pintassilgo deixasse uma árvore e pousasse em sua mão. E assim se deu. Ele faleceria da doença aos 12 anos, em 1930. Esse fato, que o emocionara quando criança nos tempos da primeira comunhão, sempre voltava à lembrança agora aguçada pela disposição das duas senhoras em orar nas proximidades do seu túmulo como claramente ouvira dizerem.
Seu túmulo é um dos mais visitados do cemitério, cheio de placas e mensagens fixadas por fiéis agradecidos pelas “graças recebidas”.
Parara. Volta-se e divisa a entrada do cemitério da qual já deixara pra trás. Resolvera entrar e visitar o túmulo de Antoninho da Rocha Marmo. Sobreviveria ao calor, ao suor e ao cansaço.
Ultrapassou o portão principal. Não sabia a direção do túmulo. Não havia ninguém por perto. Não havia quem informasse. Caminhou no sentido do prédio da administração e deu de cara com um funcionário com uniforme de trabalho. Informando-se dobrou a esquerda caminhando pelas alamedas estreitas, atento às obras de arte da maioria dos túmulos, naquele cemitério onde repousa boa parte da elite paulista desde os tempos áureos da riqueza do café. E de outras riquezas.
Nas proximidades, seguindo o caminho indicado, reparara no meio dos túmulos uma mulher vestida com simplicidade, blusa amarela e calça jeans, se bem observara.
Tentou encontrá-la para a localização exata mas parecia ter se esgueirado naqueles recantos, nas reentrâncias dos outros túmulos. Mais alguns passos e ela reapareceu, sem que o advogado atentasse de onde ela saíra, permanecendo estática na frente de um túmulo de granito preto, com figuras angelicais:
- A senhora sabe onde é o túmulo do Antoninho?
- É este aqui onde estou, apontando para um deles, como se esperasse a pergunta.
O advogado se aproximou:
- A senhora recebeu alguma graça, também?
- Graças a Deus, não foi preciso.
Enfeitado com ramalhetes e vasos de flores, a placa que identificava o sepultado era simplória: “19.10.18 a 21.12.30, viveu, sofreu e morreu Amando Jesus”.
Ao se fixar nas velas acesas nuns castiçais fixados numa caixinha retangular de metal, do lado direito, a moça com quem trocara aquelas palavras havia desaparecido. Outra vez? Onde se escondera de novo? Atrás de um túmulo? De que túmulo, ora? Como alguém pode desaparecer assim estando ao seu lado?
Ao deixar o local depois de pensar nos efeitos das graças de todos aqueles que as registraram com uma placa fixada no túmulo de Antoninho, passando por um recanto triangular onde ardiam velas acesas encontrou, desconhecido para ele, o túmulo de Maria Judith de Barros, também com muitas placas de agradecimento por graças recebidas. Quem fora ela? Uma senhora que morrera aos 41 anos de uma doença degenerativa, além de ser maltratada pelo marido.
As duas senhoras que conversavam sobre a intenção de orar no túmulo de Toninho da Rocha Marmo não apareceram ou desapareceram. Tentou lembrar-se de seus rostos, mas não guardara deles a menor impressão, a menor expressão. Lembrava-se apenas da bengala na qual a mais idosa se apoiava.
Mas, ele próprio, o que fora fazer no cemitério da Consolação, no tumulo do menino considerado santo? Apenas vontade? O desejo de alguma graça que não atinara? Onde se escondera a moça de blusa amarela que o recepcionou defronte ao túmulo, onde se esconderam as idosas que ultrapassaram a portaria e não chegaram ao túmulo?
Sem pensar muito nas respostas a essas indagações, voltara-se para a arte dos túmulos, verdadeiros monumentos que dão um toque de harmonia, beleza e sensibilidade ao ambiente de paz.
De volta à Consolação, admirado com o que vira no cemitério, apressou-se em descer a avenida, camisa literalmente molhada de suor, tentando entender a sua visita ao túmulo sem que tivesse qualquer motivação pessoal ou a necessidade de uma graça, “graças a Deus não foi preciso”. Surpreendeu-se com a citação da mesma frase da mulher de blusa amarela que desaparecera ao seu lado que viera como um forte apelo inconsciente de gratidão. Voltara àquelas experiências em plena luz do dia que há pouco tivera. Nem um sonho nem uma alucinação, porque mantivera a consciência, a despeito de todas aquelas imagens e sensações estranhas como uma viagem fantástica mas terrivelmente real e sobretudo assustadora.
Seria sintoma de estresse? Seria a falta de dinheiro? O desgosto com a decisão judicial cujo teor estava na sua pasta? Ou algo pouco mais transcendente, uma advertência de que há algo acima do chão da Paulista e um negativo refletido pelo sol desse mundinho sendo abatido pela devastação crescente?
Essas sensações não lhe eram raras. (continua)

25/01/2010

ALUCINAÇÕES PAULISTANAS (I)


Avenida Paulista e sua exuberância

Explicações
Este texto é longo daí porque eu o estou dividindo. A continuação “publicarei” proximamente.



Com chuva e tudo, teria que ir para São Paulo, na região da avenida Paulista para encaminhar alguns trabalhos por lá pouco depois do seu café.
Recolheu a chaleira, ferveu um pouco de água e tomou o café que preparara na copinha do escritório.
Vacilou, pensou em adiar a viagem, mas não havia jeito. Lá pelas 10 horas e pouco, desceu pelas escadas e saiu correndo pela chuva, até alcançar o carro, estacionado mais a frente, rua com pouco movimento. Enfrentaria toda aquela chuva, o trânsito complicado, horas parado no Cambuci, começou a ter dor de cabeça só de pensar no que passaria.
Tentou se acalmar, contar até dez, pensar em algo agradável transpondo-se para o período da tarde quando já estaria de volta com tudo resolvido, mesmo que no começo da noite.
Não foram grandes as dificuldades. Surpreendentemente chegara rápido. Em São Paulo a chuva diminuíra. Não demoraria muito e o céu começara a limpar e o sol já se impunha no começo tímido, esquentando no final da manhã. Aquele calor úmido que aguça o mal estar, a preguiça, embora a poluição estivesse contida pela chuva intensa de há pouco.
Estacionou na rua da Glória, no estacionamento mais barato, embrenhou-se pela praça da Sé, invadida por desocupados, alguns ainda molhados, encolhidos no alto da escadaria da Catedral e desceu para o metrô. Havia nas escadas uma dezena de vendedores de guarda-chuvas baratos, decepcionados com a chuva que durara pouco e o sol que brilhava. Seguiu de metrô até o MASP, fazendo antes conexão na estação Paraíso.
Sempre ficava um pouco longe do vão dos trilhos, sempre no meio da plataforma. Imaginava alguém o empurrando na hora em que o trem chegasse. Clima de terror que talvez viesse da infância, porque gostava de assistir e se assustar com aqueles filmes B. Um filme impróprio para sua idade naqueles idos em que havia severo controle, “O fantasma da rua Morgue”, suspense com Patrícia Medina que o deixara sobressaltado e um dia depois, ficara doente, febril, explicara a benzedeira, depois de uma semana sem melhora, que era apenas o susto que afetara as lombrigas. Mas que lombrigas eram essas? Nunca jamais as vira. O caso é que depois da bênção feita pela benzedeira, com o dedo polegar fazendo cruz em seu rosto descendo pela testa e se encerrando no peito, no dia seguinte já estava melhor. E também porque na infância costumava brincar com amigos nos trilhos do trem. Uma passagem estreita ligava dois bairros permitindo que trabalhadores apressados e até estudantes ganhassem tempo cortando caminho por ali, sempre cuidadosos ao cruzar os trilhos mesmo que não houvesse sinal de trens se aproximando nos dois sentidos. Para os garotos aquele ponto se constituía numa verdadeira festa. Quando o trem se aproximava, colocavam moedas nos trilhos esperando o resultado do amassamento que as rodas de ferro produziam. Escolhiam as melhores como relíquias. Nessas vezes à medida que o trem se aproximava tinha a estranha sensação de algum desastre iminente tal era o seu tamanho, o seu peso, sua velocidade e aquele ruído de ferro contra ferro. Um monstro. Por esse pensamento doentio agravado pelo suor que lhe encharcava a roupa manteve-se afastado um metro da linha de segurança amarela. Não se sentia bem. O calor por volta do meio-dia era intenso, úmido.
Contou as estações. Desembarcou na avenida Paulista, entrou no Fórum federal, providenciou cópias de julgado que não o favorecera. Inconformado com a má qualidade da decisão judicial, imaginando como apelaria, sentira certa fraqueza. Precisava se alimentar.
Caminhou no sentido da Consolação. Na altura do Conjunto Nacional, do lado oposto, parara numa lanchonete para uma água gelada e para se recompor do calor e do desconforto do suor que agora escorria pelo seu rosto.
Acomodara-se numa banqueta, pusera a pasta de papéis no vão sob o balcão, cuidando em apoiar o cotovelo num ponto limpo. Enxugou-se com o lenço, sentindo algum alívio em estar ali.
Um atendente negro, simpático, do outro lado do balcão, enrolado num avental impecavelmente branco anotou o seu pedido: água gelada e um sanduíche de queijo quente.
Sentia o cheiro enjoativo de um misto de presunto e queijo meio queimado na chapa. Cheiro que não suportava era o de churrasco, aquele odor de sebo derretendo na chapa ou na brasa. Ou de costela de boi também na brasa.
Tentando sobreviver àqueles cheiros que reviravam seu estômago, fixara-se no movimento da avenida, sem poder evitar o desvio de sua mente. Tal qual um colecionador doido, passou a contar os ônibus que passavam em frente. Essa mania já o atormentava no escritório quando olhava para o ponto lá embaixo. Quando percebia essa contagem insana, voltava para sua escrivaninha, recompondo-se. Essa contagem sem sentido o atordoava. Bastava uma depressãozinha e lá estava ele contando carros, caminhões, ônibus. Praticava sem perceber espécie de auto-hipnose.
O monóxido de carbono dos ônibus lá fora que se misturava aos odores enjoados da lanchonete o deixavam atordoado, ausente.
Do seu lado direito, no balcão, dois homens conversavam sobre futebol do domingo e riam alto, divertindo-se com a derrota do Corinthians para o Palmeiras, por dois gols. O advogado não se voltou para eles. Manteve-se firme olhando para a avenida Paulista. E aquela gente toda, alguns ambulantes vendendo bugigangas, altos brados, ruídos de motores desregulados e de motos, fumaça preta...
Sem muita explicação, num dado momento, teve a sensação de que saíra da lanchonete da Paulista e se projetara para algum canto qualquer no espaço. Como um avião que decola a jato.
Abrupta e violentamente, sentiu o pavor de se encontrar consigo mesmo, como prisioneiro diante de um espelho e, pelos seus olhos, não entendesse seus próprios olhos e sua própria imagem refletida, que se tornara, então, desfigurada. Um outro rosto se sobrepusera ao seu próprio rosto, inquisidor. “Quem era ele?”
Como se uma porta se abrisse, revelasse uma cena de vasto deserto, um chamado ao longe, um aceno quase imperceptível. Era ele nalgum lugar indefinido, olhando na mesma linha dos seus olhos, o mundo lá fora, violento, avermelhado, seco, desértico, sedento com pequenos pontos verdes que brilhavam como esmeraldas, num contrataste impressionante de resistência à desolação.
A fumaça preta que o envolvia se tornara vermelha, venenosa. Os ônibus pareciam estar numa distância infinita, como se olhasse por um binóculo poderoso, com imenso alcance, ao contrário. As pessoas igualmente distantes pareciam flutuar, emitiam cores diferentes: violeta, vermelho, amarelo, azul...
Foi acordado de seu devaneio (ou sonho, ou pesadelo), pela pergunta do atendente do barzinho, impaciente com o silêncio do freguês:
- Seu queijo quente e a água doutor estão aí, doutor. Deseja mais alguma coisa?
De volta ao chão da Paulista, engoliu o sanduíche, bebeu a garrafinha inteira de água gelada, o que o recompôs, levantou-se dando dois passos para o caixa do lado esquerdo, próxima da saída. Uma mulher magríssima, cabelos compridos à altura dos ombros, vestido vermelho decotado como se quisesse mostrar o que não tinha, com um risinho irônico fez o troco sem olhar para o rosto do advogado. Já na calçada dez metros depois, voltou para o boteco para apanhar a pasta que ia esquecendo sob o balcão. Meio atordoado, decidiu caminhar, descendo a Consolação. Dobrou à direita, foi para o outro lado para aproveitar a sombra porque o paletó lhe pesava, até chegar nas imediações dos muros do cemitério da Consolação. (continua)

17/01/2010

CONCEITO DE FELICIDADE

EXPLICAÇÃO

Esta crônica já publicada há anos, a escrevi num momento muito próprio de reflexão, nas variáveis e experiências que a vida insondável me impunha (e impõe) no dia-a-dia.
Ela é inspirada em “fatos reais”, rigorosamente, e ao me decidir pela sua republicação aqui tentei ser menos emocional e mais “frio” no relato.



Muitos são os tipos humanos que conhecemos ao longo da vida. De alguns, lembramo-nos com emoção, com ternura. De outros, apenas nos lembramos, mas nos lembramos sem um motivo lógico, consciente. Comigo esse fenômeno é frequente. De repente, sem mais nem menos, vejo-me repetindo o nome de alguém que remotamente conheci num episódio qualquer que ficou pelo tempo mas que perdura na memória, afluindo sem explicação.
Não é o caso de um colega de trabalho falecido há vários anos que me marcou bastante.
Seu passatempo preferido era a leitura clássica. Com uma particularidade: discutia mais o estilo literário do que propriamente as idéias do autor.
Ocupava uma posição gerencial na empresa e, como qualquer outro dedicado profissional, tinha orgulho de sua ascensão embora naqueles dias, por razões diversas, especialmente por uma forte crise econômica que afetava a indústria, enfrentasse no seu trabalho, momentos de nervosismo e tensão. Aquelas reuniões que todos reclamam sem razão.
No dia-a-dia convivemos em muitos almoços. Com outros dois amigos, um deles médico, já falecido, filosofávamos às vezes sobre o mistério da vida e da morte. Esse meu amigo era um tanto cético em certas proposições, mas não era daqueles cheios de números na cabeça e uma mente vazia.
Certa feita, com entusiasmo, passou ele a relatar sua ascensão profissional. Começara sua carreira numa fábrica de automóveis de há muito extinta (Vemag), ao lado de um colega a quem se referiu respeitosamente como sendo um mestre em sua profissão, reconhecendo mesmo ter aprendido com ele muito do que sabia em sua especialidade.
E arrematou:
- Onde estará ele? Sempre o encontrei no mesmo lugar, na mesma escrivaninha, sem grandes aspirações, emoções...
- E no entanto continua sendo mestre? perguntei-lhe
Diante do leve mas sugestivo gesto afirmativo, de seu rosto iluminado pelo entusiasmo, completei:
- Então, antes de tudo, você precisa avaliar quem é mais feliz. Ele mestre na mesma mesa, sem grandes aspirações ou você nessa sua posição hierárquica elevada sujeito às pressões e aos desencantos cotidianos. Tudo se resume, meu amigo, a um mero conceito de felicidade. Você já avaliou isso?

Minhas observações não tinham a intenção de constrangê-lo. Sem conseguir disfarçar, porém, algum desapontamento, silenciou. A conversa mudou de rumo.
Uns dois anos depois, já afastado desse meu amigo, eis que, acometido de doença crônica mal cuidada, veio a falecer. Num fim de semana chuvoso.

Os sonhos transmitem mensagens e imagens estranhas, misteriosas e mesmo premonitórias. Viagens.
Certa madrugada, bom tempo depois do seu passamento, sonhei com ele.
Com muita nitidez eu o vi ansioso (ou talvez mais que isso, esperançoso) em meio à subida de uma escada, ansioso, parecendo esperar por alguma ajuda, tentando galgá-la, ao lado de outras pessoas e rostos.
Muitas vezes pensei sobre isso. A existência estabelece um processo de experiências, de causa e efeito que nos une, inclusive, a pessoas. Encontros e desencontros. Experiências de vencer e perder.
A ansiedade, a emoção que pressenti em meu amigo no sonho, todos aqueloutros rostos, lembraram-me que, ao lado dos degraus da vida cotidiana, material, a serem galgados, uma outra ascensão nos chama sem que, necessariamente, demos ouvido. E nessa, talvez, num dado momento, sabe lá onde, necessitemos de algum humilde mestre que nos ensine os passos para cima. Porque, creio, uma tênue linha separa os dois mundos. Pois,

"Não te maravilhes por eu te dizer: Vós tendes de nascer de novo. O vento sopra para onde quer, e ouves o som dele, mas não sabes donde vem e para onde vai. Assim é todo aquele que tem nascido do espírito". (Ev. João 3-7,8).



Imagens
Google
Velas: tapetedepenelope.wordpress.com/2009/09/21/

20/12/2009

IMAGENS DE LISBOA

Disse numa outra crônica sobre Portugal que para o visitante de fora, as imagens que coleta pertencem àquele momento em que presenciadas ou fotografadas. Num estalo tudo pode mudar, embora na Europa muita coisa não mude. Há monumentos que sobrevivem há séculos.
Nos meus tempos de ginasial havia um professor de história que enaltecia o rei D. Diniz que intensificara na localidade de Leiria, a cultura de pinhais que serviriam mais tarde para a construção naval. Na época dos descobrimentos, o pinho fora usado na construção dos navios.
Inibo-me um pouco em perguntar que fim levaram os Pinhais de Leiria na minha ignorância num momento duma excursão. A guia me pediu que esperasse.
Uns minutos depois, chamou-se a atenção apontando para uma enorme área verde:
- Ali estão os pinhais de Leiria!
Bem, lá estão, preservados, há já 700 e tantos anos.
A Europa é assim. Ela guarda a memória dos séculos.



Lisboa é uma cidade arrumadinha, bonita, que se entrosou na comunidade européia e, sem dúvida, foi beneficiada por isso.
Um local muito agradável é o bairro do Rossio. Descemos à estação de Campo Pequeno do métro (pronúncia em Portugal), bem cedo para irmos até lá.
À nossa frente a bilheteria eletrônica que nos parecia uma entidade marciana. Eis que uma senhora portuguesa que lá desembarcara, com incrível delicadeza, percebendo as dificuldades dos “estrangeiros patrícios”, foi solícita e amável em nos ensinar a mexer na geringonça.


Não dá para negar nossa descendência portuguesa para quem tem, claro, sangue português. Nós nos parecemos de um modo incrível. No vagão deparei-me com um sósia de um velho tio. Tanto era parecido que evitei encará-lo para evitar mal entendido.


Fotografado da Torre da Santa Juta, o Rossio com destaque para a Praça Dom Pedro IV


O Rossio preserva o lado mais antigo e tradicional de Lisboa. Afastando-se do centro, encontram-se vielas e becos, casas velhas, que não imagino o tempo de existência.
Por ali, num ponto mais alto, numa praça, esculpido na rocha, o deus Netuno mira o mar com aquele semblante severo para não ser contrariado. Afinal, é o deus dos mares.





Netuno esculpido na rocha - Rossio









Descemos nos rumos do Largo do Chiado. Tiro foto dando a mão para a escultura em tamanho natural do poeta e escritor português Fernando Pessoa, “sentado” numa mesa do bar “Café a brasileira” que fora a de sua preferência.


















Eu e Fernando Pessoa (1888-1935), o grande poeta e escritor português - também astrólogo - na Praça do Chiado. As referências dão conta de que no local de preferência do escritor se instalava o "Café a Brasileira". Vejam que a foto revela uma certa "Casa Havaneza". Não procurei saber da "Casa a Brasileira". Quem sabe alguém explique. Duas frases de Fernando Pessoa: "Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente." e esta: "O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não."


Tomo um susto com a placa “zona pedonal” que soa muito estranho. A palavra não existe no Aurélio mas por derivadas, conclui tratar-se de zona de pedestres.
Por ali é possível ascender pelo elevado de Santa Justa, inaugurado em 1902, uma Torre Eiffel em miniatura. De lá de cima dá para mirar ao longe a cidade, incluindo o Castelo de São Jorge, do outro lado, construído numa colina.


De bonde chegamos a esse Castelo-fortaleza de São Jorge – santo guerreiro – construído em 138 AC. Todas essas construções (muito) antigas mexem comigo, ao imaginar o nível de sacrifício que aquela gente (islâmicos?), em condições tão precárias, sem recursos técnicos, enfrentou para elevar uma fortificação daquele porte no alto duma colina.
Mas, ali, no pátio do Castelo, há um chamamento à reflexão. Sob a sombra tênue de uma oliveira, que parecia ter sido vandalizada, uma placa já desbotada, destacava uma mensagem “aos viajantes”. A “oração da árvore” difundida na internet, como agora constato, com o texto seguinte contendo forte apelo ecológico:

[Abaixo, Castelo de São Jorge - à direita a árvores e a placa com a "oração da árvore". Sua autoria é atribuída a Veiga Simões, Arganil, Portugal, 1914 - seria adaptação de um texto iugoslavo]



Tu que passas e ergues para mim o teu braço,
Antes que me faças mal, olha-me bem.
Eu sou o calor do teu lar nas noites frias de inverno;
Eu sou a sombra amiga que tu encontras
Quando caminhas sob o sol de agosto;
E os meus frutos são a frescura apetitosa
Que te sacia a sede nos caminhos.
Eu sou a trave amiga da tua casa,
A tábua da tua mesa, a cama em que tu descansas
E o lenho do teu barco.
Eu sou o cabo da tua enxada, a porta da tua morada,
A madeira o teu berço e o aconchego do teu caixão.
Eu sou o pão da bondade e a flor da beleza.
Tu que passas, olha-me e não me faças mal.





De volta ao Rossio, descendo de auto-car (ônibus) rumamos para a rua Augusta, imperdível, sofisticada como fora (ou é) a nossa própria rua Augusta em São Paulo. Bons restaurantes, lojas e tudo o mais.

Há muito, muito mais a dizer de Lisboa, mas fico por aqui até porque as imagens se perdem na memória mesmo com a ajuda das fotos.

E os portugueses em relação ao Brasil? Pelo que constatei pelas ruas, eles gostam muito do Brasil, como uma criação sua, que fala português, embora com “aperfeiçoamentos” (por exemplo, a palavra “bicha” para fila, foi “definitivamente” substituída por esta última por “influência” brasileira, pelo significado que tem aquela aqui).
Mencionam muito a violência brasileira, no Rio em especial, mas são admiradores declarados da música e de pontos da cultura brasileira. E das novelas.

Fico por aqui. Não falarei mais de Portugal embora haja muito a falar, após fechar a trilogia: Coimbra, Évora e agora Lisboa. Nem tenho mais disposição de voltar para Portugal, não por qualquer rejeição ao país que gosto muito, mas por não suportar 11 horas dentro dum avião. Quer saber? Não sei, sei lá, entende.

Um consolo: conheci em Lisboa uma guia de turismo de bom nível cultural que gostaria de conhecer o Brasil, mas receava atravessar o Atlântico...de avião. Jamais seria navegadora naqueles tempos de descobrimentos e aventuras porque havia que vencer o “mar tenebroso” (Atlântico) cheio de monstros e traições...

13/12/2009

BUCÓLICOS (i)

O Rio Piracicaba e seu nascedouro em Joanópolis (SP)




























Foto 1: “Cachoeira dos Pretos” onde nasce o Rio Piracicaba – há alguma divergência sobre a origem do nome. A versão aceita, oficial, tem a ver com o português Antonio Preto que aportou na Colônia em 1562. Entre seus descendentes, Manoel Preto, escravagista, caçador de índios foi bandeirante e sertanista. O nome da cachoeira, então, proviera da família Preto.

Foto 2: Barco solitário no rio Piracicaba em dia de cheia (foto de Milton Pimentel Martins).

Morei no ABC e guardo, sim, muitas lembranças de São Caetano do Sul. Acho que já me referi nestes Temas sobre isso. E por que fui embora?
Porque de onde morava via aquela chaminé assustadora da refinaria de Capuava, tal qual uma vela gigante queimando gases, por horas e horas.
O odor forte de borracha queimada que vinha das indústrias de pneus. Gases tóxicos expelidos na calada da noite que dificultavam a respiração.
Um dia, há mais de duas décadas, aproveitando a proposta profissional, de “mala e cuia” e mudamos para o interior.
Quando aqui chegamos, no meu bairro, no qual até hoje estou, pela manhã, uma pequena boiada cruzava o meu caminho. Pássaros em profusão caminhando a poucos metros de meus pés.
Veio o progresso, claro, a cidade cresceu muito. Sumiu a boiadinha, claro, mas ainda usufruo desses privilégios porque vivo próximo de amplas áreas verdes, num setor mais alto próximo duma das margens do rio Piracicaba. No parque da rua do Porto a que já me referi, todo domingo caminho por ali o que me ajuda a relaxar e a própria reflexão na medida em que a idade é assumida.

O Rio de Piracicaba nasce na pequena cidade de Joanópolis, a 170 quilômetros de Piracicaba.
No dia em que lá estive chuvas intensas faziam da Cachoeira dos Pretos (a 18 km do centro de Joanópolis), um espetáculo a parte, uma queda magnífica de 154 metros sinuosos transitando a água entre pedras, um trajeto sinfônico. Diz a placa: “Aqui nasce o Rio Piracicaba”.

Duma nascente semi-canalizada, em espasmos, jorra água límpida logo ali ao lado. Experimento aquela água levíssima da fonte, algo raro nestes tempos de degradação. Nada de excepcional se não sentisse seus influxos positivos que provieram, certamente, de seu nascedouro virgem.
Naquela paragem, a área é de preservação ambiental. Um dia desses volto e subo no alto da montanha de jipe (oferecido no local como “aventura”) para me aproximar mais da intimidade daquela exuberância toda, do seu nascedouro. Encantamentos.

Aqui em Piracicaba, o rio que lhe dá o nome está bem com tanta chuva. Nos tempos de seca é uma lástima. Mesmo assim, nesses dias magros com baixíssima vazão, lá estão pescadores insistentes com suas varas, lançando anzois sob água “servida”, mal cheirosa...
Os peixes de pequeno porte sobrevivem nesses tempos magros, nessas águas turvas. Corajosos os pescadores e os peixes.




Joanópolis é considerada a "Capital do Lobisomem" desde 1983 por conta de obra literária e causos sobre a figura folclórica. Na cidade é ele um personagem hospitaleiro e bom sujeito. Assim, "cabe a cada um desvendar os mistérios da meia-noite nas noites de lua cheia" em Joanópolis.



Voltarei com esse tema, “Bucólicos”: Ilhabela e borboleta azul, gambazinhos e papagaios.

22/11/2009

A SABEDORIA DOS RIOS















“A mata, templo sob azul e a límpida nascente
Permitiam-lhe saciar n'Alma adormecida,
Inspiração profunda no mundo perecida
Intuindo orações de elevação crescente.”


Para a resenha (parcial) do livro "Mistério das catedrais" de Fulcanelli, acessar:


Texto ampliado

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 Esse trabalho de atravessar viajantes como balseiro também com resultado revelador, se conhece no livro “Sidarta”, de Herman Hesse, autor alemão que, na década de 60 influenciou jovens e não tão jovens com suas idéias de desapego a qualquer doutrina. Hesse recebeu o Prêmio Nobel em 1946 e, para muitos, fora um sábio.

Sidarta era um jovem que certo dia resolveu deixar a casa de seu orgulhoso pai, um brâmane, para ele próprio, buscar a sabedoria.

Saindo pelo mundo com seu amigo Govinda, viveu todas as experiências mundanas até que, envelhecido, procurara a companhia de um “simpático” balseiro que certa vez o transportara. Com ele passa Sidarta a conviver e trabalhar.

E Sidarta, incentivado pelo amigo balseiro (Vasudeva) passa a ouvir a voz do rio (“O rio sabe tudo e tudo podemos aprender dele”). E pergunta um dia ao velho amigo:
“O rio tem muitas vozes, um sem-número de vozes, não é meu amigo? Não te parece que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e a de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?”

E assim, vivendo humildemente, substituindo seu amigo balseiro que encontrara, à beira do rio, a sabedoria e se retirara para a floresta, foi paulatinamente encontrando ele próprio sua interioridade e sua paz.

Mas, faria uma revelação importante para seu amigo Govinda que o reencontrara, sobre a sabedoria: “Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la, podemos vivê-la, podemos consentir ela nos norteie, podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la.”

Tal se dá, certamente, porque a sabedoria é uma experiência pessoal, interior, intransmissível. O mesmo não se dá com o conhecimento.

Assim, ousei colocar lado a lado esses dois personagens tão semelhantes que, verdadeiramente, destacam o vigor místico dos rios, fonte de batismos, com sua cadência harmoniosa, sua voz, seu ir sem volta mais sempre presente até o fim de seu curso, culminando no seu trajeto majestoso em alimentar canais maiores num processo inexorável de transformações.

Por isso, sobre a água, encerro com São Francisco, valendo-me de um trecho do “Cântico do Irmão Sol”:
“Louvado sejas tu Senhor pela irmã água / que é tão útil e tão sábia / preciosa e casta”.



Foto 1: Parque Nacional Canaima - Bolivar - Venezuela. Foto de Alberto Corona (corona.blogia.com)

Foto 2: Imagem de São Cristóvão - azulejo - Igreja Matriz de Rio Tinto - Concelho de Gondomar - Porto / Portugal


15/11/2009

ÉVORA E SEUS ENCANTOS


Tenho Portugal comigo com muito carinho. Não sei se pela língua ou por gestos educados que recebi nas duas vezes que lá estive.
Quando se faz uma viagem ao exterior e se escreve impressões sobre determinada cidade ou país, são como retratos instantâneos. Tudo pode mudar no dia seguinte. Évora me marcou muito e explico nestas linhas

Évora, olhando-se o mapa de Portugal, fica a direita de Lisboa, um pouco mais ao sul. Não dá, de ônibus, duas horas de viagem. O país é pequeno significando que lugar algum é muito longe.









Cidade pitoresca de “terras lusitanas”, cheia de monumentos históricos, bastando citar que ali remanesce, construído no século II, pelos romanos, ruínas dum templo à deusa Diana.

É a cidade cercada por muralhas, estas construídas entre os séculos XI e XII.
A visitação aos inumeráveis monumentos é até fácil pela proximidade entre eles.
Limito-me, porém, a dois: a igreja de São Francisco e a “Capela dos Ossos” (sob outro enfoque, já me vali das informações ali colhidas em outra crônica – “Dos sem religião” de 27.02.2009):
Tenho certa admiração pelo santo que dá nome à igreja. Na sua entrada, numa pequena placa, lê-se a seguinte mensagem escrita por Santa Tereza de Jesus:

“Nada te perturbe,
Nada te espante
Tudo passa
Deus não muda e a paciência tudo alcança
Quem Deus tem, nada lhe falta
Só Deus basta.”

Não sei se, motivado por essa “recepção”, o caso é que, chegando à sacristia – não havia ninguém – tive aquela sensação muito comum quando damos um vexame, enrubescendo o rosto. Essa eclosão fora inspiradora, algo parecido com o que sentira quando, havia poucos anos, visitara o túmulo do santo em Assis, na Itália.
Saí da igreja ainda com aquela sensação e, ao lado, entro na “Capela dos Ossos, construída por franciscanos no século XVI na qual, nas paredes internas, estão incrustados cinco mil crânios humanos e, nos pilares, por ossos dos membros inferiores. Todos esses ossos foram obtidos em cemitérios precários que existiam ao lado de diversas igrejas.

E no pórtico, no alto, se lê: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.

Claro que tal capela constitui-se numa evocação anti-vaidade, em linha com o que praticara e pregara até exacerbadamente São Francisco já que, no final, tudo se reduz ao pó para não dizer, ossos. Tal pode ser meio macabro, mas é, sem dúvida, uma sacudida pró humildade. Os ossos lá estão...
Évora, pela sua “idade” tem, também, suas vielas estreitas e desertas.
Numa delas, arriscamos um restaurante simples, descoberto ao acaso, numa quebrada, uma placa indicativa mal escrita. No seu interior, baixa iluminação, muito própria de filmes “noir”, mesas de madeira escurecidas. Serviço aceitável. De entrada um vegetal temperado com puríssimo azeite de oliva. Pareciam grandes feijões verdes. Eram favas. Fui...
Daí, seguindo por aquelas ruelas, chega-se à praça do Giraldo, a principal da cidade, movimentada, turistas usufruindo das mesas no centro dela. Idosos, muitos, relaxavam e falavam nas velhas edificações do outro lado.

Relata o escritor Laurentino Gomes, no seu best seller “1808” que em Évora, as forças de Napoleão praticaram “duríssima repressão”, diante da resistência inútil dos seus moradores aos avanços das tropas comandadas pelo general Loison: “Homens, mulheres, crianças e velhos foram caçados sem dó nem piedade pelas ruas, que ficaram banhadas com o sangue de mais de 2000 mortos numa única tarde.”

Bastara descer uma ladeira qualquer e voltamos à rodoviária. Não me lembro no caminho de ter encontrado qualquer transeunte em toda sua extensão.
Na rodoviária, modesta, os banheiros eram vergonhosos. Bacias turcas imundas afastavam inapelavelmente homens e mulheres de seu uso. Aliás, na Europa, na média, não são os sanitários muito promissores até mesmo nos pontos turísticos bastante visitados.
O que ficou de Évora, porém, foi aquela sensação de paz, algo das vibrações que talvez a história, os seus mortos e o clima evoquem de modo imperceptível, mas que de alguma maneira são captadas pela mente desarmada. Sutilmente.

(Na crônica de 14.06.2009 escrevi sobre Coimbra, a Universidade e D. Diniz)

GIRALDO EM ÉVORA
(Grafia original)

"Foi esta Cidade conquistada aos Mouros...e no ano de 1166 a recuperou um nobre Cavaleiro…chamado Giraldo sem Pavor…e alguns deliquentes, com os quais vivia na serra de Montemuro, exercendo latrocínios, que por serem em forma de guerra, ficavão menos indecorosos.
…e estando perto da Torre da Atalaya se adiantou mais dos seus companheiros… Foy subindo Giraldo pela parede…chegou ao alto , e lançou a Moura abaixo, e entrando na torre degolou o Mouro…e trouxe a sua cabeça com a da filha a seus companheiros, que foi bom prognostico da vitoria, que depois alcançarão.
…um homem a cavallo…armado todo com uma espada nua em uma mão, e na outra duas cabeças de homem, e mulher, aludindo a esta façanha de Giraldo, donde teve principio sua restauração, e liberdade."

P. António Carvalho da Costa
COROGRAFIA PORTUGUEZA
Tomo Segundo 1708

Fotos pessoais:

1. Praça do Giraldo - Évora
2. Capela dos Ossos - Visão interna: as paredes porosas são constituídas de crânios e ossos

03/11/2009

ENCONTROS E DESENCONTROS





















A pequena empresa onde trabalhava passava por sérias dificuldades. Havia a necessidade urgente de um vendedor dinâmico que enfrentasse o mercado reticente para o produto ofertado (venda de anúncios).

Um dia, inesperadamente, esse vendedor apareceu. No começo, como quem pouco quisesse, com postura humilde, propôs-se a desenvolver novos clientes.

Com o passar dos dias, seu trabalho começou a dar resultados e, a cada êxito, sua personalidade ia se modificando na mesma proporção.

Passou a pedir pequenos adiantamentos por conta de comissões. 

Esses adiantamentos foram subindo de valor, chegando o momento em que a situação tornara-se insuportável.

Todos na empresa passaram a "dormir e acordar" com ele. Era envolvente, convincente, com fortes marcas de mau caráter. Era tênue a linha que o separava da gatunagem pura e simples. Talvez fosse contido pela religião que afirmava professar. Ele conseguira ser a preocupação número um de todos. Eram comuns comentários como:

- Ontem "fui dormir" com o M.., sonhei com ele e "acordei" com ele!

Essa opressão psicológica que ele exercia, por um fenômeno qualquer de sua personalidade, tirava algo de todos. Sua presença tornara-se insuportável, ‘vampiresca’.

Alguns meses, quando o clima se tornara de tal ordem negativo, num daqueles estouros inevitáveis, um murro na mesa, de vez em quando necessário, foi posto a correr.

Muitos anos se passaram. Um dia, no centro de São Paulo dei de cara com ele. Tentei evitá-lo, mas ele fez questão em se aproximar. 

Disse apenas:

- Olha, criei juízo...

Balbuciei qualquer coisa, perplexo com a afirmação, logo ele a quem expulsara do ambiente para bem de todos, de mim principalmente. Que tipo de juízo criara? Como poderia ter extraído de si aquela sua marca opressiva? Que reflexão fizera? Sem mais uma palavra, desviou-se e se foi. Quem sabe, realmente "criara juízo". Jamais o esquecerei, porque ele significou na vida de algumas pessoas e na minha própria, por certo tempo, um desencontro. Aquele que finge dar, mas que só tira.

Há pessoas que, efetivamente, num dado momento, entram na vida de outras, provocando grandes provações e dissabores Às vezes de forma inexplicável. E depois desaparecem, se vão, da mesma forma como vieram, deixando, porém, o gosto amargo da lembrança.

São os desencontros. São as pedras que rolam, se chocam e se batem. Mas, não são somente pedras que rolam e se batem.

Há momentos que elas se aproximam, aquelas pessoas que nos momentos mais difíceis também de forma inexplicável, se apresentam e fazem um bem imenso a outras, um simples gesto, falando qualquer coisa oportuna que enleva, que recupera.

Uma palavra pouco machista nos dias de hoje: a ternura. Isso mesmo! É o que algumas pessoas transmitem, sem afetações, com sinceridade e de tal ordem que muitas vezes somente a gratidão não é suficiente para compensar as benesses recebidas. E o mais curioso é que não se dão conta do que fizeram.

São os encontros. Os reencontros. O retorno a algum passado que parece vivido mas perdido, quem sabe, nos séculos, no éter.

Quando faço uma reflexão dos desencontros e encontros, chego à conclusão que nesta vida atribulada, até agora, conto mais encontros, reencontros. Que permanecem em minha mente como momentos preciosos, de amizade. Quanto de amor há na amizade?

Se os desencontros foram maiores, tento não me convencer disso até porque tenho consciência de minha obrigação de perdoar e relevar. Difícil, mas ver o lado bom do atrito das pedras.

Foto: abracadabra.weblog.com.pt