18/04/2010

SILÊNCIOS

Esclarecimentos


Tenho postado aqui crônicas que falam de animais, vegetarianismo, de sensações incomuns, de sensibilidades, de experiências pessoais gratificantes ou não e até de ternuras.
Gostaria de alertar que esse é o meu perfil ideal, aquela veia que tenta encobrir ou superar o meu perfil real: tenho fama de “pavio curto” (agora nem tanto), tenso e impaciente. Por força de minha profissão que exerço há décadas há casos em que me obrigo a ser implacável e “imperdoável”.
Não sou criminalista, mas acompanhei casos à distância. Alguns episódios são crônicas reais que revelam faces do submundo.
Eis que de repente publico uma delas. Espero que não afugente os que me acompanham.
Essa crônica abaixo, já foi postada, não faz muito no blog “Prosa e Verso de Boteco” (http://prosaeversodeboteco.zip.net/). Eu a republico, agora, aqui, como uma forma de reforçar aquele "perfil ideal” que, quem sabe, vá ajudando a superar o meu perfil “real”. Sabem, essas questões de “ternura”, “apreço” e quejandos?



PÁSSAROS COMILÕES

Manhã de domingo, horário novo, verdadeiro, volto mais cansado do que o normal de minhas andanças dominicais de uma hora e tanto. No parque da rua do Porto em Piracicaba.
É que, no Carnaval, principalmente na terça-feira, fui subjugado por uma gripe violenta. Há sequelas, ainda. Minha filha me diz ao fone que é coisa de velho. Reajo – velho não, jamais; antigo, sim! Ao fundo ouço aqueles ruidinhos enternecedores próprios de bebezinhos. Eram as gêmeas, agarradas, reclamando sua atenção.
Acomodo-me na minha poltrona favorita, ou única no meu pequeno escritório aqui de casa.
Antes, bem cedo, como que anunciado o fim do horário de verão, maritacas barulhentas empoleiradas no coqueiro ao lado do quarto, emitiam aquele som muito próprio delas, agudo, alto.
Baixa o silêncio total nas redondezas.
Da janela fixo-me nos movimentos dos passarinhos que avançam sobre cuias de mamão e bananas sobre o muro, que diariamente lhes são garantidas. Deliciam-se, afoitos, disputam, derrubam as frutas e quando me percebem espiando esvoaçam...fogem, mas voltam dali a pouco. Não que eu tenha feito qualquer movimento para espantá-los. Erguem a cabecinha, reviram-na a quase 180º e aqueles olhinhos tentam divisar algum inimigo, alguma ameaça. São as graças divinas. Por perto só eu que os amo, mas eles não acreditam nisso. Desconfiam, porque têm razões para desconfiar.

Uma tarde flagrei um papagaio também avançando sobre os restos de frutas que sobraram. Nunca vi ave tão colorida e brilhante. Infelizmente não voltou mais.


São nesses momentos que me volto para o que fui, para o que sou e o que deixei de ser, embora quisesse e, afinal, o que me resta?
Com todas as atribulações, meditando sobre os encantos e desencantos da profissão que exerço não por diletantismo, na fuga de um passarinho azulzinho, a resposta sutil me veio de não sei de onde:
- Te resta ser feliz, ô meu!

(“Ser feliz”, sem pessimismos e sob risco de cair no lugar comum, está muito difícil neste mundo de hoje, com tantas desgraças, tantas tragédias, tantas catástrofes e tantas ameaças diárias; essa relatividade já tentei demonstrar numa velha crônica, aqui postada há pouco, “Conceito de felicidade” em 17.01.2010)


Foto: “Papagaios empoleirados num fio elétrico”, de Eduardo Pimentel Martins extraída de filmagem em Extrema – Sul de Minas.

11/04/2010

TERNURA, essa palavra feminina...(?)

Explicação

Nesta crônica revelarei espécie de balanço de minha convivência profissional e pessoal. Por óbvias razões excluo os laços familiares até porque já escrevi sobre esses laços.
A palavra ternura, sempre a usei com muito cuidado. Me perdoem, mas me parece que ela tem mais um uso feminino. Não me sinto à vontade, por exemplo, em dizer que meu amigo tal é terno. Agora a mulher tem toda a autoridade para dizer que fulano exala ternura e que sua amiga tal é terna (a palavra é feminina!).
Nesse passo, em vez de ternura, usarei apreço que no Aurélio significa “consideração e estima dispensadas a alguém”. Desapreço, então, será a desconsideração e não estima dispensada a alguém.
Tudo que direi a seguir não tem qualquer sentido de vaidade ao enaltecer alguns acontecimentos que me marcaram. A minha (des) importância é conhecida dos meus amigos e circunstantes. É que, se eu não falar desses acontecimentos, se perde a crônica.
Fui agraciado por inumeráveis e até pequenos gestos carinhosos que me surpreenderam e ficarão comigo para sempre. Até devo já ter relatado alguns por aí ou por aqui.(pequenas ternuras?).
Mas há outros que extrapolam e me levam a fazer, em torno deles, um relato mais aprofundado.


Apreços, desapreços e...ternuras

Trabalhei por décadas na indústria na automobilística.
Já me referi a viagens profissionais que fiz ao exterior, que não foram tantas, mas significativas.
Não pensem que tudo nessa minha vida profissional foi fácil? Não, tudo foi conquistado com suor e lágrimas. Diria mesmo que se para sobreviver há que ser eficiente 50% e político outros 50%, saibam que fui eficiente num nível em torno de 90%. Por isso sobrevivi. Nunca soube fazer política dentro da empresa, não consigo bajular e não consigo me comunicar bem com aqueles que considero imbecis, soberbos.
Assim, se sobrevivi tantos anos nessa indústria se deu pelo meu desempenho.
Um dia saí da empresa Chrysler. Minha fábrica (Santo André) estava em processo de extinção.
Fui, sim, homenageado porque entre outros dera condições, no seu clube na Estrada do Mar, de fazer ali a festa de Natal. Se querem saber, o sindicalista Lula, já muito badalado mesmo pelos executivos empresariais, lá esteve.
Depois virei, num campeonato interno de futebol de salão, nome de taça.

A VW comprou as instalações da Chrysler. Anos depois, fui convidado, como homenageado, entre outros, por ocasião das comemorações do 40° aniversário do VW Clube (maio de 1998) pelo que eu havia feito no antigo Clube-Chrysler que fora por aquele herdado.
Claro que dois amigos leais puseram meu nome para ser lembrado. Apreços.

Ainda na minha atividade profissional dentro da empresa, pela primeira vez senti a sola da demissão, numa poderosa multinacional da região de Piracicaba.
Certo dia surgira novo presidente um americano bastante arrogante. Um sujeito alto, loiro, cabelos mais para o grisalho, rosto magro e avermelhado, nariz empinado, um perfeito capataz, tolo mesmo. Falava um português razoável.
Viera para proceder à reestruturação da empresa. Iria “cortar na carne”, anunciava a “rádio peão”.
Criou-se um clima de expectativa e terror.
Na reunião decisiva da reestruturação, a demissão sobrou para mim. Em meu lugar, assumiria um bajulador que vinha de área estranha àquela que viria a ocupar, exatamente porque era bajulador.
Pelo que soube mais tarde, todos aqueles gerentes a quem dera apoio, sempre, haviam também votado pela minha demissão.
Passado aquele momento amargo, inédito, porque nunca tivera tal experiência, refleti muito sobre o acontecido. No meu íntimo, me perguntava se, rigorosamente, não desejara em muitos momentos deixar a empresa que perdera aquele brilho de antes.
A verdade é que essa experiência virara um pesadelo. Muitos se sucederam. Via-me chegando à empresa pela manhã, rumava para minha sala, não a encontrava ou havia alguém estranho sem rosto no meu lugar. Caminhava, então, pela fábrica como um fantasma, via sem ser visto, renovando a angustia da demissão ao acordar.
Sabia agora, após administrar centenas de demissões nas várias multinacionais em que trabalhei os efeitos danosos que produziam nos demitidos:
- Recebera minha paga, pensava. Sentira o amargor do fel.
A despeito da demissão, fiquei mais uns meses treinando alguém para um determinado tipo de tarefas.
Todos os colegas cordiais de antes – difícil “amigos” nos muros da empresa -, subordinados se afastaram solenemente como se qualquer aproximação significasse o contagio de doença incurável. Esses desavisados se esqueceram que estavam numa fila esperando a vez. E ela foi chegando...
O desapreço se materializou, então, do modo mais amargo. Romperam-se os laços e o dever de gratidão.
Apenas três colegas mantiveram a mesma harmonia de antes. Sabia por eles que nem tudo estava perdido.


Voltava de São Paulo um pouco deprimido. O tráfego estivera intenso, congestionamentos nas Marginais, tudo fazendo subir os níveis de poluição e de cansaço.
Minha depressão, além dessas razões, devia-se mais pelo que assistira numa agência do INSS. Entre todos aqueles humildes que buscavam com resignação seus direitos no imenso salão, sentada num canto, chamou-me a atenção, uma senhora envelhecida, um pouco obesa, com o rosto sulcado por incontáveis riscos miúdos de rugas.
Suas mãos esbranquiçadas, como se seus dedos estivessem gastos e, no pulso, feridas mal curadas, notando-se que o tratamento seria precário.
Por acaso ouvi sua história: trabalhava havia mais de 30 anos, sempre em serviços modestos de doméstica e, nos últimos tempos, sem poder fazer muito esforço, achara que se daria bem como lavadeira de roupas.
À medida que o tempo foi passando, suas mãos começaram a ser afetadas pelo sabão, pelos detergentes, pelo cloro, resultando em dores, naquelas feridas nos pulsos, de tal ordem que não poderia mais trabalhar.
Bem atendida pela funcionária da instituição, foi-lhe explicado que pelo pouco tempo que contribuíra para a previdência, provavelmente nunca se aposentasse, porque havia uma "tabela de progressão" de contribuições que a levaria a contribuir ainda por muitos anos.
Em princípio, nada poderia ser feito para ela, salvo um afastamento por doença ou invalidez. Meio confusa, nada entendendo, encarou-me com aquele rosto enrugado, olhos cansados e apenas disse, quase em desespero:
- Ai meu Deus...
Saiu lentamente do local, em passos curtos, como se carregasse nas costas um pesado fardo.
Para essa mulher, não havia respostas que pudessem consolá-la. E de nada adiantaria a imensa ternura que sentira por ela, pela sua humildade, pelo seu rosto cansado, pelas suas rugas. A humildade transmite uma réstia de beleza, apesar de tudo. A vida do brasileiro que mora precariamente, nos morros, nas favelas, lutadores e esquecidos. Aqui senti mais que apreço, ternura e decepção diante da minha impotência em ajudá-la. Quem sabe a invalidez a tenha aposentado. Quem sabe.


Já relatei esta passagem (v. “Raízes Sancaetanenses - I de 21.06.2009) para mim muito mais do que manifestação de apreço.
Não conseguirei esquecer por ser eu quem era, um garotão meio inseguro perante o prefeito Anacleto Campanella de São Caetano do Sul e sua forte influência em todo o ABC.
Dei-me conta de Campanella, no seu primeiro mandato, quando da inauguração do denominado viaduto dos Autonomistas em meados da década de 50, uma alternativa para aqueles que precisassem cruzar as linhas da então “Santos a Jundiaí”, vindo do Bairro da Fundação para o Centro ou no trajeto oposto.
Moleque, encolhido, acompanhei a solenidade e o discurso do prefeito.
Anos depois, no segundo mandato, por programação de jornal semanal capenga me encorajei, numa tarde de sol, em chegar ao seu gabinete para uma mal programada entrevista. Sou bem recebido pelo seu “eterno” secretário e aguardo na ante-sala.
Minutos depois, sou conduzido ao gabinete. Ele me encara com aquele seu jeito irreverente, olhando para os papeis, responde algumas perguntas, levanta-se impaciente daquela mesa arredondada de trabalho sai apressado do gabinete e me ordena:
- Venha comigo.
Saímos do prédio da Prefeitura. No estacionamento, ele abre a porta do carro, manda que eu entre e segue nos rumos de Santo André.
Paramos no próspero Diário do Grande ABC e ali ele me apresentou para o diretor de redação do jornal. Escrevi para aquele jornal por algum tempo. Perdi o pique pela minha timidez e insegurança, modalidades do meu perfil.
Em 1969, como deputado federal, logo depois do AI-5 do regime militar fora ele cassado na "lista" de 12.01.1969. Encontrei-me com ele logo depois. Não demonstrara mas é certo que sentira o golpe.
Mais tarde, doente, vez por outra eu o encontrava abatido na Barbearia do Ciccilo que fora um ponto político importante em São Caetano.
Sempre falei com ele porque havia aquele gesto de anos antes que até hoje me surpreende, porque desinteressado e de alto apreço.
Longe há anos da cidade, sua presença se dá com o time de futebol do São Caetano que manda os jogos no estádio municipal batizado com o seu nome: Anacleto Campanella.
Chamo, afinal, esse gesto de apreço ou de ternura?

O que incomoda é que tudo passou de repente, numa velocidade...da vida.


Ternuras desprendidas, incondicionais

Tenho falado muito de animais nestas crônicas. Espero não cansar os que me acompanham. Essas crônicas, creio, estejam insertas em “edições” passadas neste “Temas” ou por aí.
Resumo:
. Da vaca e do bezerro que servi água num dia de sol escaldante: o olhar manso e doce da vaca agradecida;
. Do quati domesticado: sua festa subindo pelos meus ombros e fazendo cafuné na minha cabeça com suas patas agudas;
. Das abelhas nervosas que rodeavam meu rosto sem nunca me atacar;
. Do leitãozinho esfaqueado mortalmente que me encarou decepcionado pelo que eu “deixara fazer”;
. Da corujinha perneta que diariamente, talvez agradecida por ter sido salva, que pousara no coqueiro do meu quintal por muito tempo;
. Dos gambazinhos frágeis que aparecem por aqui;
. Dos gatos vadios que também apareceram: um deles me olhava com aquele ar maroto após meus gritos pelas suas mordidas no meu pé. Sumiu como chegou; o mais inteligente quando deitado na grama parecia um trapo, foi atropelado. Uma perda;
. Do escorpião que não conseguiu me picar (Sorte? E se foi o que muda?)
. Dos múltiplos passarinhos comedores de bananas e pedaços de mamão, no muro, ao lado do meu escritório que me fiscalizam desconfiados de alguma traição – que nunca virá - voltarei com eles;

. Da minha cachorrinha preta, com 17 anos que me chama sem parar, latindo, da tarde às 8h00 da noite enquanto não for visitá-la e trocar sua água. Ela come até gomos de mexerica que colho do pé. Alguns minutos com ela, afagos, carinhos e ela sossega.

É isso ai


Fotos:
(i) Anacleto Campanella (from tribunadoabc.com.br - Google imagem)
(ii) Imagens parciais de minha despedida da Chrysler em 11/1981 e o "meu" time no mesmo dia.
(iii) Eu e a cachorrinha Preta, de novo, no seu habitat (foto: Milton P. Martins).

04/04/2010

PIRÂMIDES DE TEOTIHUACAN...e os arrepios da brisa (?)

Há anos, como uma forma de treinamento – especialmente no que se referia às estratégias de negociações sindicais - e adquirir no mais alguma visão internacional fui escalado para conhecer alguns países latino-americanos, incluindo o México.
Quando aportei no México, na capital, claro, já batia, então, forte, a saudade dos meus e do próprio Brasil. Já me cansara, efetivamente, de "hablar o portunhol". Já estava quase chegando ao “espanhol puro”.

O México não seria a última parada. Haveria, ainda, a Venezuela, então um país com forte moeda, pelo seu petróleo, que irrompia "aqui ou ali" na versão de um bem humorado venezuelano que lá conheci e ainda uma passada por Manaus.

Naqueles idos, as comunicações não tinham a desenvoltura e as facilidades de hoje

Num entardecer, depois de uma visita atribulada à fábrica de automóveis na cidade
de Toluca, meio deprimido, não tanto pelo "home sick", mas pela recepção impaciente que recebera nessa minha estada profissional, dentro de um carro magnífico, mal me dava conta dos recantos mexicanos.

Rumávamos para meu hotel e eu me perguntava do desequilíbrio daquele dia. “Afinal, pensava, não seria uma rara oportunidade que teriam os mexicanos que me recepcionaram de comparar os países e os modos de vida”? Naquele momento a oportunidade se perdera.

Não me dera vontade de começar qualquer conversa com o motorista, um sujeito afável e amistoso que não merecia minha indiferença. Era eu quem perdia aquela mesma oportunidade.

Diante do meu silêncio deselegante, ligou o rádio. A música que tocava, naquele instante, fora um alento: "Jesus Cristo" de Roberto Carlos. Naquele país distante, apertado pela saudade, nada mais reconfortante que ouvir Roberto Carlos com aquele seu apelo: "Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui..."

Fora como um chamamento, uma sacudida para me lembrar da religiosidade dos mexicanos. Nas fábricas que visitei, em vários locais, mesmo na linha de montagem, havia altares com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. A reverência permanente à santa.
















Visitando a magnífica Catedral Metropolitana da cidade, num dia de solenidade religiosa, mal pude me mexer dentro da igreja de tão lotada.
Num dos últimos dias no México, numa providencial manhã de folga, fui visitar as pirâmides de Teotihuacan, nas proximidades da cidade.
Essas pirâmides situam-se num local que chamaria de imenso largo escampado. São suntuosas e impressionantes construções de pedra, com degraus com cerca de 50 cm de altura.

O dia estava ensolarado e quente, o céu azul. Soprava uma leve brisa.
O conjunto das pirâmides transmitia, com o contraste do céu e do sol, um sentido enigmático. Ao me aproximar de seus domínios, fui acometido de leve mas perceptível arrepio que circulou pelos meus braços.
Escalei a pirâmide do Sol, entrei nalguns de seus compartimentos com a vontade de intuir quais motivações religiosas poderiam ter inspirado tal modelo de obra.

De volta ao Brasil, pouco tempo depois, descrevia a um médico amigo as impressões desse passeio nas pirâmides de Teotihuacan. Estudioso de temas esotéricos ele me perguntou, sem qualquer expectativa, se eu não sentira algo de anormal naqueles sítios.
Relatei-lhe o arrepio, chegando ambos à conclusão de que aquela reação poderia ser resultado de vibrações que permaneciam no éter, ecoando pelos séculos, sendo captadas, eventualmente, pelo profundo magnetismo religioso que marcara o local.
Anos se passaram.
Desde aquela viagem, por muito tempo o México ocupara minha mente e espírito com muito carinho. Porque naqueles dias, e creio que ainda agora, havia interesse efetivo dos mexicanos pelas coisas brasileiras, especialmente pelo futebol e pela música.
Em 1992, por ocasião das comemorações do 5° século do descobrimento da América, as diversificadas pesquisas e indagações que essas comemorações propiciaram, só vieram confirmar minha relativa ignorância sobre os astecas.
Se os espanhóis se comportaram como bárbaros para dominar o grande império asteca, como se comportavam estes em relação aos seus prisioneiros?
Os astecas praticavam sacrifícios, com requintes de crueldade e depois os devoravam. As pirâmides, então, asseguram os historiadores, cheiravam matadouros porque eram exatamente o que eram. Os prisioneiros, com os corações extirpados do peito, eram empurrados lá do alto.
A cidade do México foi construída sobre a destruída Tenochtitlán (capital do império asteca, fundada em 1325). De tão bonita e organizada essa cidade asteca, Cortês, o conquistador espanhol, chegara a escrever: "Não posso dizer outra coisa senão que na Espanha nada existe de comparável".
Houve, pois, naqueles terrenos, do alto das pirâmides e nas suas imediações, muito sofrimento, sacrifício e sangue derramado. As vibrações que ali se expandem podem conter gritos propagando forças revoltas e inconsoláveis do sofrimento e da morte.
O meu quase imperceptível arrepio, mas indelével, quando da minha visita às pirâmides, não terá sido uma tênue ligação com uma manifestação sutil do mistério da morte e do pavor dos sacrificados?
O arrepio é comum no frio, no susto e no medo. Não me parece que seja veículo para transmitir um instante de inspiração, de elevação.
Por essas contradições é que, até hoje, tenho essa como uma experiência valiosa e inesquecível. Não poderia ser indiferente a ela, imaginando que aquela sensação fosse apenas o efeito da brisa que soprava. Enfim, não posso ignorar, num mero dar de ombros essas passagens que, de certa forma, fortalecem o espírito e temperam a vida.

PS: Alguém insiste: “E se fosse mesmo apenas a brisa “encanada”? Pensei e não vacilei na resposta: “O que mudaria?”

Fotos:
Catedral Metropolitana do México: flicker.com (Google imagens)
www.planetware.com/picture/mexico-teotihuacan (Google imagens)

28/03/2010

MADAME BOVARY E ANA KARENINA, DUAS PERSONAGENS

Explicação

A literatura contém muitas obras em que paixões arrebatadoras eclodem e os personagens com tudo rompem, incluindo os padrões sociais para exatamente viverem num outro estágio de vida, alimentando uma nova experiência de convivência apaixonada, de amor.
(Já me deparei com situações dessas em que o casal apaixonado assume a troca por nova vida com o novo amor. Nos dias de hoje, em qualquer fórum, se desvendados os verdadeiros motivos das separações e divórcios, em muitos essas paixões aparecerão.)
Se as pequenas paixões momentâneas, casuais, uma presença constante são inesquecíveis o que dizer das grandes paixões. Aceito qualquer ressalva sobre esse tema tão humano e tantas vezes guardado a sete chaves no coração de tantos por toda a vida.
Mas, ah! os tempos, naqueles tempos duma sociedade tão conservadora quanto hipócrita que fiscalizava com rigor as atitudes das mulheres, em especial, e suas paixões adúlteras, não aceitas e rejeitadas à execração...
Por isso, proponho-me a analisar duas personagens literárias famosas: “Madame Bovary”, obra de Gustave Flaubert escrito nos idos da metade do século XIX e “Ana Karenina” de Leon Tolstoi, escrito uns vinte e poucos anos depois, ainda no mesmo século.

Madame Bovary

Para a resenha / comentários deste livro, acessar:

TEXTO REVISTO













Ana Karenina

Para a resenha / comentários do livro, acessar:

TEXTO REVISTO






21/03/2010

PAIXÕES


Explicação

O texto a seguir reconheço meio confuso, escrito há muito e que foi rejeitado em tudo quanto publicação, ao ser submetido.
Não tenho obrigação, porém, de apenas divulgar textos compreensíveis. Não me agrada a proposição melosa, falsa, como se dá com mensagens supostamente inspiradoras, das centenas de PPS (power point slideshow) que tramitam pela internet: “faça isso”, “faça aquilo”, e pior, com um fundo musical enjoativo, atribuem tantas vezes esses textos a autores famosos que jamais se prestariam a redigi-los. Nesses PPS percebo um sentido de exaltação do ego dos seus autores. Escrevem mirando-se no espelho.
Bem, o meu texto “patinho feio” que nunca será um cisne, é este:

(Quando o texto é grafado em italico, é porque foi acrescentado ao original)

Quais forças movem o ser humano? A paixão? A necessidade? A vaidade? Um ideal?
A paixão tem escalas de intensidade: pode ser um sentimento cego, que afeta a razão ou algo entusiasmante, altamente motivador na consecução de um objetivo.
A vaidade, por seu turno, vai do fútil ao suntuoso com a mera motivação de ostentar. E só por isso ela se sustenta. Ela despojada, nada resta no espelho senão o ser humano diante de sua imagem. Porque a vaidade é sobretudo um alimento sem sabor e peso. Apenas vaidade.
A necessidade impulsiona o ser humano condenado apenas à sobrevivência. Tudo que ele realiza nesse estado, é desprovido de entusiasmo, de motivação. Resta apenas a alavanca da necessidade.
O ideal pode ser um objetivo vago perdido no tempo e no espaço ou um objetivo superior, materializado na mente, a ser alcançado um dia ou nunca.
O idealista que persegue seus sonhos, se coloca uma pitada deles na sua necessidade de sobrevivência e eis que o trabalho passa a ser não um fardo, mas prazer.
Talvez os grandes transformadores do mundo, nas suas ações, tenham colocado nos seus objetivos superiores uma boa dose de paixão, um bocado de vaidade (há que se admitir?) e o ideal misturado com a necessidade.
Para a maioria dos mortais, sujeita à necessidade de sobreviver, essas forças se manifestam em escalas menores, contidas ou apenas latentes. Quantas vezes o talento não é reprimido apenas porque há a necessidade da sobrevivência ?
Tudo isso revolve a minha mente porque, daqueles que tiveram o privilégio de viver e conviver intensamente a década de 60, deixei para trás muito de minhas paixões (transbordantes!), reprimi um pouco a vaidade (sempre ela!), ou a ela renunciei em alguns níveis porque, sobretudo, havia que prover a necessidade.
E assim aqueles ideais sonhados de ser um transformador do mundo ficaram nos sonhos irrealizados, nas nuvens da saudade e da nostalgia. Frequentemente eles se formam de novo no céu e eu os contemplo saudoso e agradecido.
Essas reflexões conduzem-me a perguntar quais seriam minhas genuínas paixões hoje, meus ideais e, afinal, o que me resta de vaidade.
Sem ter como explicar porque, do alto da minha não juventude etária, apaixonei-me pelo verde, pelas árvores, plantas, flores e animais de um modo geral. Um certo fanatismo a ponto de me tornar intolerante com a ignorância, a inconsequência e com o descaso de todos aqueles que destroem uma árvore por qualquer motivo ou mesmo sem motivo.
Na mesma década de 60, na sua segunda metade, com um amigo, imprimimos uns versos numa cartilha, com o sugestivo título "Versos para ninguém". A poesia, chamemo-la assim, porque não tinha talento para ela como não tenho hoje e que encerrava essa cartilha, de minha autoria, denominada "Pense", tinha a seguinte seqüência:


Pense nas flores silvestres e se tranqüilize,
Pense na singeleza das árvores e sorria,
Pense na alegria da passarada, sinta o Criador,
Pense no céu de doce azul, anime-se,
Pense nos animais despreocupados, reflita,
Pense na criança que nasce e confie,
Pense no sol que brilha e não desanime,

Pense num amanhã melhor e espere,
Pense no que de bom existe e lute,
Pense em toda a Natureza
Não se desespere,
A Natureza é Deus...


“O que de bom existe” é um conceito vago, segundo a avaliação de cada um.
Esse “poema” serviria hoje em gênero, número e grau para um PPS, mas deem o desconto, porque foi escrito na década de 60 (a menos que pusesse como autor, ninguem menos que Eisten, ai esse PPS imaginário circularia pelo mundo).
Ironias a parte, que me lembre, a palavra ecologia começou a ser empregada somente a partir da década de 80.
Muitos anos se passaram dessa "poesia" na qual reconheço o seu sentido ecológico e otimista, parece ser já o início dessa paixão que me arrebataria com o passar dos anos.
Aqueles todos que, como eu, apoiam-se tantas vezes na sombra ou na beleza duma árvore para um consolo ao impacto das misérias humanas, ela que tudo dá, até a paz florida do seu silêncio, que acolhe os pássaros e os animais, não podem desistir desse ideal de preservação, porque nesses tempos conturbados, tudo se resume a um estado de necessidade. Ou mais, de sobrevivência. O mundo apequena-se. A vegetação chegou antes de nós por aqui, como copa protetora de nossa vida, de nosso bem estar e de beleza para os que querem vê-la.
Há, pois, sempre que replantar o que foi devastado e lutar contra os predadores inconsequentes, teimosamente, com paixão, pela vaidade, pela necessidade ou por ideal.

Fotos de Milton P. Martins

14/03/2010

ILHABELA, NASCENTES E BORBOLETAS



Eis-me de volta à Ilhabela não tanto por minha vontade pessoal.




Um dos meus filhos, amante da Ilha, resolveu reunir, num fim-de-semana seus irmãos e amigos e respectivas esposas.
Explorando a Ilha, volto àquele centro simpático de cafés, livrarias, bibliotecas e restaurantes. Visito o Museu de História Natural e converso com um dos humildes zeladores do museu.
Num dado momento eu o provoco:
- Bem, a Ilhabela é uma ilha?
- Sim, claro, estranhando a pergunta.
- Cercada de mar e água salgada?
- Sim, é uma ilha.
- A água doce, vem de onde, do continente?
- Não, das nascentes nos morros aqui da Ilha.
- Mas, se é uma ilha cercada de água salgada, como pode haver água doce, de onde ela vem?
Ele ameaçou uma resposta certeira mas vacilou. Me encarou, refletiu, talvez pretendendo argumentar que eram reservas das chuvas intensas naqueles dias, mas como essas reservas permaneciam nos tempos sem chuva?
- Isso é obra de Deus, respondeu, me encarando com amizade, sorrindo.
Dei-lhe um tapinha no ombro e saí.
E eu, na minha ignorância, geologicamente, também não sei explicar as águas das ilhas. Talvez alguém o faça.



Preparo-me, numa aventura louca, em atravessar um parque municipal, uma estradinha(mais para trilha) largura que não cabia mais do que um carro, até a famosa praia de Castelhanos.
O jipe equipado para esse desafio caia de velho, imundo. O motorista encoraja a todos, falando da grande aventura que se iniciaria.
Logo no começo dos 22 quilômetros do caminho vi que a aventura era louca, mesmo, especialmente para mim cuja condição de garotão já passara havia muito.
A passagem dos jipes, um atrás do outro, produziram sulcos fundos o que fazia com que o veículo se inclinasse a ponto de, lá com meus exageros, bater o rosto no barranco. O solo estava mole depois de forte chuva na véspera.
Embora preocupado mantive a serenidade. No trajeto assim acidentado, entre os raios de sol que irrompiam pelas frestas da mata atlântica, houve um desfile de borboletas azuis – raridades em outras plagas.
Dizem que as borboletas sobrevivem em áreas não poluídas.
Me desculpem, mas esses serezinhos me são inspiradores, um simbolismo anímico. Sei das minhas projeções nesse campo e não as escondo. Com elas esvoaçando à minha frente senti os bons augúrios, sabia que o passeio acabaria bem mesmo com as inclinações cada vez mais acentuadas do jipe que roncava pelo esforço em sair daquelas valetas.
Assim se deu.




A praia dos Castelhanos é muito bonita.








À tarde, voltei de lancha. Não me dou bem com barcos sobre o movimento das ondas. Vou para o enjoo imediato. Concentrei-me do modo que pude para não dar vexame. Mas, em duas vezes a vontade de esvaziar o estômago se manifestou.
Todos os que voltaram por terra, por aquele mesmo caminho ficaram retidos por cerca de dez horas. Passaram a noite naquele escuro de breu atormentados por borrachudos. Camionetas 4 x 4 não conseguiram superar o barro e encalharam impedindo a passagem dos jipes.
O socorro de abnegados com "troler" só chegou ao alvorecer, um escândalo, porque se trata de um parque público que não reserva qualquer equipamento de emergência ou modos de ajuda em casos dessa gravidade.


Sobre as borboletas azuis, já publiquei o poema abaixo, muitas vezes. Eu o transcrevo de novo para dar o sentido que dou a elas. E porque considero dos melhores – tenho muita dificuldade em obter inspiração poética, só transpiração não basta:

ETÉREOS

Nessa de desânimo
apatia
Não sei o porquê
de tal melancolia
(ou nostalgia?)
Desmedida

Sei não!
Cadê a Inspiração
os elementos Etéreos?
Clamo, pois, só, no (meu) deserto
Respostas não vêm
Ilusões não há (mais).

Miro margaridas murchas
(bem-me-quer, bem-me-quer!)
Que se preparam para semente
Sinto o sol...
mas não me aqueço.
Num momento, surpreso
confuso
Sinto o Etéreo, porém.

Uma manchinha azul
No éter
Vindo, chegando, esvoaçando!

Ora, uma simples...
Borboleta...azul!

Ela dança nos meus olhos
Solene, encantada, frágil
magnífica, rebrilhante...
E pousa, então...
na margarida
a mais desfeita
na gema amarela.
(apenas três pétalas ressequidas)

Apreendi logo
o valor da escolha...
Da borboleta azul
Etérea
tão tênue
tão efêmera
Bem vinda...

Porque na margarida
murcha
na gema
Ela sentiu a vida
(ainda)

Assim falava ela
a borboleta azul
Etérea
na minha nostalgia
(ou melancolia?)
Naquele dia...



Fotos:
Ilhabela / paisagem - Milton P. Martins
Praia de Castelhanos: Google

07/03/2010

BUCOLISMOS (ii)



Explicação

Os amigos que me acompanham neste espaço, provavelmente estejam já um pouco entediados com a frequência dos relatos que tenho feito sobre experiências com animais: quati, abelhas, borboleta azul, leitãozinho assassinado e até escorpião no meu sapato.
Esses temas podem parecer por demais ingênuos mas será preciso saber como nasce a decisão de torná-los públicos.
Saibam antes os que chegaram agora, que a despeito desses temas bucólicos minha preocupação política, mundana, se reflete nos artigos “publicados” no portal www.votebrasil.com. Já são dezenas.

Escrevo agora sobre


Gambazinhos

... que aparecem por aqui.




A vontade de falar sobre eles se deu num fim de tarde quando o sol se punha e o céu começava a se acinzentar.
Sentado sob um pé de atemoia assistia o céu mudando de cor entre nuvens, com minha velha cadela preta por perto. Filosofava me perguntado os motivos dessa constância e da própria Lua que já dava o ar da graça, ainda tão misteriosa para nós. O denominado “satélite” que parece dar algum equilíbrio à orgulhosa matriz.
Pássaros apressados voavam alto em bando em busca do seu refúgio.
Ali mesmo, numa tarde assim, minha cachorrinha latia com insistência. Vou para o quintal, chego perto e numa forquilha da mesma árvore, semi-morto encontro um gambazinho refugiado quanto possível dos ataques que seriam mortais da cadelinha se o pegasse. Ali, quase imóvel, formigas atacavam sua cauda.
Com cuidado o levei dali.
Já dominado, o bichinho como recurso de frágil defesa abria a boquinha mostrando aqueles dentinhos virando-se para tentar morder minha mão. Não exalou aquele cheiro desagradável característico.
Curativo feito na cauda soltei-o num lugar estratégico do jardim, sob uma folhagens, com água e uma banana. À noite, a banana não mais estava lá e o gambazinho, alimentado conseguira fugir para o seu...esconderijo.
Frequentemente, naquele mesmo lugar do jardim, deixo uma banana à noite. De manhã não há restos dela. Esses gambazinhos também viraram pensionista aqui do pedaço. E se gostarem da pensão e ficarem por aqui. aí a gente vê o que faz, mas sempre à distância de tal modo que tenham sua vida longe do contato humano. Creio que eles se abrigam nas proximidades do Rio Piracicaba ou nas suas margens e à noite – são animais com hábito noturno -, saem em busca de alimentos

Não demoraria muito, tarde da noite, no comedouro improvisado aqui no muro para os pássaros, fiquei cara a cara com um deles, pego em flagrante equilibrando-se no portão, aproveitando o que restara dos mamões e bananas. Não fugiu. Ficamos nos observando olho-no-olho sob a luz a menos de dois metros. Deixei-o e fui embora.


Fotos:
Gambazinho / Google
Entardecer / Milton P. Martins

27/02/2010

BALEIAS, CARANGUEJOS E TARTARUGAS

As baleias vítimas da crueldade secular




Caça à baleia no modo praticado nos tempos de "Moby Dick"




Uma denominada impropriamente “baleia assassina”, a Orca, matou há pouco sua tratadora que a explorava com malabarismos num parque aquático na Flórida (parque temático Sea World Orlando). Confinada numa piscina, todos pensam que um animal daquele porte, fora do seu habit natural, reagirá sempre do mesmo modo fazendo graça e tolerando afagos. Equivocados. Embora com crueldade menor na aparência que as covardes touradas num dado momento, confinadas, essas baleias haveriam que assim reagir num momento dado agredindo o seu algoz aparente. Condene-se a baleia? Nem pensar. Se tal se desse, seria tão mais covarde que as covardes touradas. E o touro que atinge ou não seu cruel agressor, é ele sempre condenado.

Por falar em covardia, navios baleeiros japoneses continuam caçando baleias sob o argumento de que, mortas, serviriam para pesquisa científica, mas seus restos são enlatados, como atum.
Séculos sendo abatidas, num processo de extinção, o argumento da pesquisa científica é um despautério inominável.
Nessa prática covarde, esses baleeiros, com arpões de última geração ferem violenta e mortalmente esses animais que vivem nos mares como que os encantando.
Um desses baleeiros japoneses, há pouco provocou colisão com um barco da organização internacional “Pastores do Mar” que exatamente se opunha à mortandade desses magníficos animais. O barco, danificado, afundou. Esse não é o primeiro caso, nem será o último provocado pela arrogância japonesa.

Um livro emblemático escrito em 1850: “Moby Dick” de Herman Melville um romance volumoso e denso, clássico na descrição das tarefas dos baleeiros no século XIX e XX.
O Autor trata essa matança de um ponto de vista “profissional”, como profissional são os abatedores do gado nos abomináveis matadouros. O óleo obtido de cada um desses animais do mar, em grande quantidade, impropriamente chamado de “espermacete” servia principalmente para iluminação, queimando e desde aqueles idos, já poluindo a atmosfera com as suas emanações.
A descrição dos métodos de abate daqueles “peixes” que ele chama de Leviatãs, é de emocionar de tão cruel que são. A história trata de um capitão (Acab) em busca de vingança perante um grande cacholete branco que, numa reação a ataque sofrido no passado, decepara sua perna.
Mas, o Autor, em muitos momentos se resigna, como neste trecho:
“Sem dúvida o homem que matou pela primeira vez um boi foi tido como assassino; talvez tenha sido enforcado; se houvesse sido julgado por bois, sem dúvida teria sofrido essa pena, por certo merecida, se qualquer assassino a merece. Ide ao mercado de carne num sábado à noite e vede as chusmas de bípedes vivos olhando as longas fileiras de quadrúpedes mortos. Tal espetáculo não acorda o canibal? Canibal? Quem não é canibal? Digo-vos que será mais tolerável o Dia do Juizo para o fidjiano (*) que salgou um missionário magro na despensa, para prevenir-se da fome à vista, do que para ti, meu civilizado e esclarecido guloso, que prendes os gansos ao chão e regalas-te com seus fígados inchados em teu paté de foie gras”.

(*) Fijiano, no texto se referindo a selvagens das Ilhas Fiji


Caranguejos: um alento







"Torrente" de caranguejos






Saindo da floresta para o mar, milhões de caranguejos nas Ihas Christmas na Australia para a reprodução e desova. Vermelhos como são, desenham imenso tapete dessa cor e caminham com seus passos desengonçados nos rumos da preservação da espécie. Nos meses em que esse fenômeno ocorre, entre novembro e janeiro, estradas são fechadas para evitar o esmagamento de milhares deles ao mesmo tempo em que guardas florestais constroem pontes plásticas para que os bichinhos possam se locomover em segurança. Eis aí um alento.


Tartarugas e os ladrões de seus ovos












O sacrificio das tartarugas e seus predadores.
Muita crueldade. Um dó profundo







Este material circulou pela internet, como uma notícia constrangedora. Creio que seja autèntico pela clareza das fotos. Nas praias da Costa Rica, em localidade não especificada, moradores praianos se apropriam de ovos de tartaruga recém postos para venderem. O produto da barbarie se avoluma em sacos carregados nas costas pelos transgressores. Trata-se de cenas dolorosíssimas e de profundo dó.

“O outro lado”, por Marcelo Szpilman – Biólogo Marinho


A Costa Rica tem enorme tradição de conservação das tartarugas marinhas. O pesquisador americano Archier Car, pioneiro na conservação de tartarugas marinhas, há 50 anos já trabalhava para preservar a espécie Lepidochelys olivacea (tartaruga oliva) em Tortugueiro, Costa Rica, hoje um dos maiores sítios de desovas dessa espécie no mundo.

E uma das características mais impressionante dessa espécie é que ela produz as Arribadas, um fenômeno que ocorre exclusivamente na Costa Rica. As tartarugas saem juntas da água em direção à praia para desovar, aos milhares, por varias noites seguidas. São mil na primeira noite, cinco mil na segunda noite e assim por diante.

Em cinco noites, cerca de 100 mil tartarugas desovam em pequenas praias, com cerca de 300 metros, em um verdadeiro engarrafamento na areia. Os ninhos das primeiras fêmeas são revirados pelas outras, expondo-os ao tempo e aos predadores (aves, onças, crocodilos e gambás), o que muitas vezes inviabiliza o sucesso reprodutivo.

Na Praia de Ostional, na Costa Rica, onde esse fenômeno também acontece, e que está retratado nas imagens, os moradores locais, baseados em dados biológicos, são autorizados a fazer o aproveitamento dos ovos que são depositados nos dois primeiros dias da arribada e que seriam destruídos pelas fêmeas que desovam nas noites seguintes. Ou seja, os moradores locais coletam os ovos depositados somente nas duas primeiras noites e deixam os ovos desovados nas três noites seguintes.

Como tudo na vida há prós e contras, críticas e elogios. Porém, os conservacionistas da Costa Rica acompanham, através das analises cientificas, o desenrolar dessa experiência que há dezenas de anos mobiliza milhares de pessoas e tartarugas.

Como estratégia de conservação, busca-se fazer um manejo sustentado equilibrando os interesses. Assim não se perdem milhares de ovos, a comunidade local tem uma fonte de renda e as tartarugas fêmeas não são capturadas e continuam se reproduzindo.


ATUALIZAÇÃO: ESSA VISÃO ATENUADA DO BIÓLOGO PODE SER QUESTIONADA. EM 12.12.2010 O JORNAL "O ESTADO DE SÃO PAULO" PUBLICOU A SEGUINTE NOTÍCIA: "A TARTARUGA-DO-AMAZONAS É UMA DAS ESPÉCIES DE QUELÔNIOS FLUVIAIS QUE VIVEM NO RIO AMAZONAS. SUA CARNE E OVOS SÃO MUITO APRECIADOS NA CULINÁRIA AMAZÔNICA, O QUE JÁ REPRESENTA UM RISCO À ESPÉCIE."
COMO SE CONSTATA, O ROUBO DE OVOS NA COSTA RICA PODE ESTAR ALÉM DO SIMPLES MANEJO SUSTENTADO SE CONSIDERADO O PEQUENO NÚMERO DE FILHOTES QUE SOBREVIVEM.


(Em Piracicaba - Estado de São Paulo, em época da piracema, pescadores marginais pescaram seis toneladas de peixe, no perído de reprodução. Não se preocupam, diante do lucro imediato que essa prática só diminui o número das espécies para os anos vindouros. Essa delinquência não pode ser atribuida apenas à ignorância mas a uma brutal irresponsabilidade)


É muita crueldade. Qual o tamanho de nosso débito a pagar às Divindades da Natureza?
Homo sapiens, tremei pelo que vos espera! A cobrança virá...

14/02/2010

CAMARÕES





Detroit fotografada de Windsor - Canadá







Só tinha o que comemorar chegando ao fim da jornada profissional nos Estados Unidos. Cumprira com poucos baixos minha estada naquele país que aprendi a admirar. O último compromisso fora em Detroit, porque me convidara a visitar a Chrysler e que, na verdade, atendera ao meu “convite” com alguma relutância; optara por conhecer sua linha de montagem toda automatizada. Para mim, seria importante essa tecnologia algo cultural, porque havia trabalhado para essa empresa no ABC e a linha de montagem era longa, cheia de “estações” de trabalho até que, na outra ponta, o carro saia pronto.
No hotel, que transpirava luxo por todos os lados (não me lembro se no Westin), no último jantar subira até o teto no restaurante giratório, envidraçado, sofisticado, que permitia ver a cidade por todos os ângulos.
Nos dois dias de feriado que procederam à visita, visitara rapidamente Toronto, passando antes pela pequena London. Naquele dia e meio achei o Canadá mais lento, talvez exalando riqueza, expressão que ouvira no passado de um belga ao se referir ao seu próprio país.
Com uns dois amigos de última hora fizemos nossos pedidos e enquanto aguardávamos a comida, num copo imenso, foram servidos camarões temperados, brinde da casa.
Já meio cismado com frutos do mar porque havia anos assumira não comer carne de qualquer espécie, mas eram eles ainda uma forma de compor algum cardápio em situações especiais, comecei por comer camarões.







Num dado momento pergunto, apontando para alguns exemplares no meu prato:
- O que são estas linhas pretas aqui, encima dos camarões?
Um dos que ocupavam a mesa, me responde com ironia:
- São os intestininhos do bicho. Eles são os temperinhos do bicho.
Diziam que os camarões eram espécie de urubus minúsculos dos mares que se alimentavam de tudo o que apodrecia.
Meu estômago revirou, um assombroso sopro em forma de arroto exalou silencioso. A minha repulsão tornara-se impossível disfarçar.
Mal jantei, um macarrão temperado razoavelmente, apimentado. Seria a salvação, depois de comer por longo tempo pizzas adocicadas, fast food, catfish frito...
Os americanos não se alimentam bem, no dia-a-dia.
Até acho que o arroz e feijão constituem uma mistura alquímica.
Certa vez, em Veneza, anos depois, ao serem servidos frutos do mar, minha rejeição se acentuou ao ver camarões misturados com bichos que pareciam minhocas. Argh.

A última vez, aqui em casa, muito bem preparado, arrisquei comer camarão no coco e arroz, algo como uma especiaria. Pois, bem. À noitinha entrei num processo febril bravo que me deixou dois dias de molho.
E assim, hoje, todo camarão à minha frente me faz ver aquelas linhas pretas às quais fui apresentado e degustei em Detroit com um vinho branco da melhor qualidade.
Não será preciso dizer que os frutos do mar foram também abolidos do meu cardápio. Para sempre.

07/02/2010

ALUCINAÇÕES PAULISTANAS (III)












Barão de Itapetininga (São Paulo).
Foto:www.vivaocentro.org.br/noticias/arquivo/04120



Continuação (última parte)


Há palavras que encerram a própria ação. Da sua desconsolação, houve na rua a consolação – ação de consolar. Recuperou-se. Antiguidade - idade antiga.
Recitou uma estrofe:
Volto-me para mim, miro-me n’alma
Medito no todo dessa realidade (?)
Insisto em desvendar a centelha calma
Mas, apenas intuo que já vivo antiga idade...


Nessas sensações alucinatórias, de vez em quando, no silêncio da sala de sua casa, já no começo da madrugada, sentia-se observado.
Olhava em direção à sala de jantar e do lado direito, na porta de acesso à cozinha, não foram poucas as vezes que parecera ter visto um vulto branco a espreita. Seria reflexo das lentes dos óculos que recebiam a claridade da luz acesa sobre sua cabeça? Ou o quê? Ou alucinações, apenas?
Sempre que tinha essa impressão batia aquela vontade de meditar sobre o evento morte e as coisas simples e inexplicáveis da vida. E nesses momentos vinha-lhe à mente um diálogo que tivera com um colega de trabalho que se proclamava agnóstico, num velório de amigo comum:
- Explique a diferença entre o Alcides deitado naquele caixão inerte e você aí de pé perplexo e emocionado. Considere que há dois dias, falávamos com ele no almoço. Hoje ele está lá, sem expressão, sem respiração, sem voz. Um defunto.
Ele apenas me olhou deu de ombros respondeu:
- Por isso sou agnóstico. Não me atrevo a explicar, só aceitar.
Era muito comum para o advogado, ao acordar de um sono profundo, sentir-se angustiado ao constatar que voltara a ser regido pela lei da gravidade, devendo carregar seu corpo denso, para lá e para cá, atrás de objetivos nem sempre agradáveis. Porque no sono, parece, a alma, o espírito ou o nome que se queira dar a essa luz que se apaga com a morte, desliza no éter sem peso, faz viagens distantes com liberdade e com a velocidade do pensamento.
Retornar à luta terrena poderia causar em momentos de ansiedade, um certo mal-estar. Esse contraste, dá uma idéia entre a possível leveza do outro lado e a vida dura deste lado, do lado que se julga ter consciência de tudo o que se passa em volta. Tudo vaidade de vaidades. Não se tem consciência de nada!
E nessas lucubrações, não faltara a “presença” de uma suicida, moça inteligente, com forte postura profissional e invejável cultura formal. Fora sua subordinada por alguns meses, na última empresa para a qual trabalhara.
Rosto que lembrava descendência nórdica, um quê da atriz norueguesa Liv Ullman, cabelos lisos claros, olhos castanhos claros, sorriso aberto e gestos delicados. Sua vida não fugia muito da média. Trabalhara em São Paulo, morando sozinha, visitava os pais quase que semanalmente e tinha bons amigos. Demonstrava alguma devoção religiosa, pendendo para o catolicismo.
No seu relacionamento profissional, porém, mostrava-se insegura. Insistia em lembrar os tempos em que fizera teatro amador. Daí, seus gestos teatrais, sua entonação de voz, sua pouca simpatia, seu artificialismo.
Meio reservada, somente depois de algum tempo, começou a se descontrair, embora, com alguma regularidade, revelasse momentos depressivos.
Certo dia, resolvera mudar sua vida profissional ou retornar ao que tivera antes. Aceitara proposta de trabalho em São Paulo, o que possibilitaria um convívio num outro ambiente profissional, mais "inteligente", dizia, no qual se dera melhor no passado.
Tempos depois, por razões de mercado de trabalho, fora demitida. Ficara desempregada, frustrando todas as suas expectativas.
Meses mais tarde, nas vésperas das festas de fim-de-ano, período em que a solidão bate forte porque o espírito natalino pode não ser apreendido por aqueles angustiados, na casa dos seus pais, tomando um velho revólver esquecido carregado parcialmente, fechou-se no seu quarto sem trancar, mirou-o contra o próprio peito e apertou o gatilho.
O tiro fora fatal. Atingira o coração. Nos segundos que se seguiram à sua morte, às pessoas que às pressas vieram em seu socorro ao estrondo, disse tenuemente que se arrependera e de que não queria morrer.
Apenas um momento de irreflexão, conduziu-a a um caminho sem volta.
O instinto de defesa é anulado, sobrepondo-se o sonho e a esperança do encontro da leveza num mundo no mínimo não tão denso e amargo como o seu. Por ruim que fosse, seria melhor do que a sua vida, teria acreditado ela.
Um tal gesto, porém, mesmo que tomado num momento de amargura e dor, exige uma imensa coragem e renúncia porque a viagem ao desconhecido tivera a hora antecipada. Certamente que não seria bem recebida para o local que deveria se apresentar porque desembarcaria antes da hora. Não haveria recepção.
Nesses casos, arrepiado com os vultos que via, sempre se perguntava que tipo de vozes interiores ouve o suicida no exato momento em que age contra a própria vida? Que vozes tão eloquentes são essas que suplantam o instinto primário da preservação? Se, ao longo da vida, há a preparação instintiva para a morte natural, aí incluída a acidental de qualquer natureza, quais os efeitos do suicídio no exato momento da passagem para o outro lado da existência?
Essas perguntas, ao longo do tempo, o afligiam muito.
Convencera-se haver uma transcendência que martela, conduzindo-o a aceitar o princípio da reencarnação. Porque, havia decorado a frase do "Bhagavad Gîtâ": "com a morte, não se perde nada daquilo que a alma adquiriu. As experiências que o homem fez nas vidas passadas, tornam-se instintos e incitam-no ao progresso, até inconscientemente."
Por longo tempo, aquela moça suicida passara em sua mente. Com ela sonhara, vendo-a escondida num canto sórdido acenando. Uma presença relativamente constante, especialmente nos seus momentos de solidão e calma.
Certa vez, num desses dias que o rosto da suicida viera à sua mente, quando cochilava em plena Catedral da Sé, quase vazia, encarando a figura de Cristo pendente, sempre, numa cruz, fez uma oração com palavras de paz e homenagens a ela. A partir daí, sua presença foi se tornando cada vez mais rara, mais rara, até desaparecer por completo.


Agora os ônibus estavam próximos trafegando pela Consolação, barulhentos e expelindo monóxido de carbono em seu rosto, as pessoas também próximas já não emitiam cores, apenas um semblante carregado e preocupado. Tudo voltara ao normal, passara a andar no chão duro daquilo que chamava realidade.
- Ao normal? Pensara ele, tentando esquecer aqueles momentos assombrosos e reagir.
Esses seus devaneios o assustavam, porque lembrara-se do que se passava com o príncipe Michkin no romance “O Idiota”, de Dostoievski ao pressentir e depois passar por um ataque epiléptico.
Fez a longa caminhada a pé com destino à praça da Sé.
Seguiu pela Barão de Itapetininga, para admirar por fora o Teatro Municipal no outro lado. Uma construção monumental pelos seus detalhes. Um dia estudaria com calma o que significara no seu todo a “semana de arte moderna” de 1922 que ali se fizera e que contara com a adesão de artistas e intelectuais, adeptos do modernismo, que se propagava na Europa.
Melhor ainda, dia desses conheceria o Teatro por dentro.
A Barão lhe fora sempre muito especial. Era nessa rua que tivera, havia anos, aquela sensação agradável de anonimato, de sua individualidade, de sua alma com a certeza de que muitos rostos com os quais cruzava pareciam ter essas mesmas sensações agradáveis. Essas sensações voltavam sempre que se assentava calmo numa rua movimentada qualquer, mesmo no calçadão próximo do seu escritório, ao observar homens e mulheres que transitavam. Mas, era na velha Barão que tudo acontecera e acontecia sempre com mais cores.
Cruzou o viaduto do Chá, saiu à direita pela Líbero Badaró rumando para a Praça da Sé.

A Catedral da Sé sempre fora para o advogado nas suas idas a São Paulo um porto seguro de repouso e meditação, naquelas tardes quentes nas quais a modorra prevalecia agravada pelo ar poluído.
Surgida a oportunidade, procurava o silêncio relativo da Catedral para receber suas vibrações harmoniosas como forma de minimizar um pouco a agressividade de São Paulo.
julgava-se um herege ao olhar impaciente a imagem do Cristo na cruz, com aquele rosto todo injuriado, sem possibilidade de dela se libertar. Pensava em Cristo, na igreja, de braços abertos, em forma de cruz, recebendo os fieis de boa vontade como vencedor e não como um eterno derrotado de cabeça baixa no crucifixo.
- Deixa pra lá. Esse meu pleito não encontrará guarida. E, ademais, não tem jeito. Entra ano sai ano, volto-me à serenidade da Catedral da Sé, pensou, com a cruz ou sem ela.
Sempre que saía da Catedral para a praça da Sé nos rumos da rua de São Bento, o encanto se esvaía. A praça mais conhecida de São Paulo, ponto central do metrô paulistano, estava deteriorada pelos botecos, pelos camelôs, pela sujeira de restos de frutas jogados pelos cantos das calçadas. Cheiro de urina nas muretas da praça.
Em outros tempos, quando havia perfeita separação entre a Sé e a praça Clovis, era um prazer mirar ambas num mesmo nível da esquina da Tabatinguera, como se uma porta se abrisse ali e por ela se entrasse na grande metrópole.
Já de volta nos caminhos do escritório, não poderia deixar de refletir sobre tudo o que passara naquela tarde.
Não percebeu qual fora o trajeto de volta ao escritório tais foram as perturbações e experiências vividas naquele dia.
Quando reassumiu sua consciência mundana, estava estacionando nas suas proximidades, vivenciado um instante de inspiradora serenidade.
Dando-se conta da volta ao comum, à rotina, à tranqüilidade relativa de seu escritório – seu reduto – apenas sorriu e, como se gesticulasse para alguém à sua frente, abriu os braços, deu de ombros e se ligou no sistema e na perspectiva de sobrevivência.
À noite, no silêncio da sala de sua casa, todos dormindo serenamente, com seus vultos à espreita reabriu o romance “O Idiota” e procurou nas suas centenas de página o trecho que tratava das impressões pós-epilepsia que o impressionara e que jamais esquecera:
“Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o resultado desse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de síntese de harmonia e da beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência?”.
Fechou o livro, e foi para o sono dos justos baixando a cabeça, mesmo no escuro espantando as sombras, seus fantasmas. Ora, ele não era epilético mas se perguntava se esses transes como experimentara na Paulista, não significariam “ascender à mais alta escala da vivência” mesmo para testemunhar a devastação e o perigo?