30/05/2010

COMO OUSAS? TUDO O QUE FICOU...

Explicação

Estaria hoje “publicando” crônica sobre a final da Copa de 1958, tudo o que houve em volta dela naqueles meus dias. Resolvi adiar.
Mas, há dias nestes dias difíceis de viver em que as coisas enroscam na indiferença e naquela pergunta perigosa:
- Para que tudo isto? Jogue tudo para cima, ora!
Refletindo um pouco, resolvi republicar a crônica completa, me referindo sobre dois espelhos. Faço, porque de um jeito ou outro há um sentido de profundidade naqueles amores impossíveis porque assim decidiram os “futuros ex-amantes” diante das circunstâncias refletidas em seu tempo.
A crônica “Como Ousas” já foi publicada em alguns blogs. Ela completa, incluindo a parte “Tudo que ficou” somente no blog “Prosa e Verso de Boteco”, que pode ser acessado por aqui. Esse blog contém poesias e crônicas inspiradas, merecendo visitas permanentemente.


Como ousas?!

Mas, como chegara aos 70 anos?

Pois, não foi ontem de manhã que assistiu o surgimento da bossa nova, mais tarde a Jovem Guarda com o ainda hoje "rei" Roberto Carlos, já meio monótono.

E os namoros, os bailes, essas coisas?
Tudo passou de repente, embora ainda sentisse o perfume da noite, da alegria dos tempos, alguns acordes ainda chegavam aos seus ouvidos, sabe lá de onde. Do éter? Ora!

- Como é bonita a Deyse, diziam seus admiradores no colégio, muitos.

O tempo foi passando e ela se casou. O marido seria guindado tempos depois a um elevado cargo executivo numa multinacional. Sua vida foi muito fácil, muitas viagens ao exterior. Sabia que os executivos da empresa a admiravam. Não poucas vezes flagrou alguns meio boquiabertos a examinando. Aquela morena, de cabelos soltos e olhos verdes...

Teve três filhos: um professor, de vida simples, mas o mais culto, um engenheiro executivo de multinacional que enriqueceu e um médico que clinicava na Itália. Tinha orgulho de dizer de seu filho médico na Itália. Tinha facilidade de ir para lá. Sempre que ia, chegava até Assis e visitava o túmulo de São Francisco. Ficava ali, naquela meia luz, absorvendo as boas vibrações e se emocionando com as pessoas piedosas que ali oravam. Como ela. Saia dali sempre renovada.

Já pelos seus 40 anos resolveu trabalhar num núcleo de saúde infantil como voluntária, ajudando um médico, pouco mais jovem parecia, com sua barba espessa, bem contornada no rosto. Bonito? Era, reconhecia Deyse.

Teve muita convivência com ele, pelo menos duas vezes por semana. Por meses. Um dia, enquanto separava ela remédios entregues, o médico entrou, postou-se ao seu lado e, baixando a cabeça encabulado, disse quase sussurrando:

- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!

Paixão é difícil de não confidenciar. Atônita, conseguiu responder:

- Eu também, doutor.

O médico se aproximou e trocaram um leve beijo, próximo dos lábios. Deyse caiu em si, seu rosto explodiu vermelho, saiu apressada e disse, já no jardim:

- Como ousas? Como ousas?

Nunca mais voltou ao núcleo assistencial. Pior para as crianças de tão dedicada que era.

Hoje, viúva, mirando-se no espelho, pouco ligando para as poucas rugas, estava conservada, lembrando-se de sua vida serena, realizada. Num dado momento, acariciou seu próprio rosto, bem ali onde o médico lhe beijara. Sentira o perfume de sua loção, de novo. Enrubesceu e emocionada, disse alto:

- Como ousas?


Fugiu do espelho que a encarava com rigor...



Tudo o que ficou...

Mira-se no espelho e vê a realidade nua de seu rosto, já enrugado, cabelos grisalhos, ajeitados.
Há muito tirara a barba trabalhada que lhe dava um ar elegante e, sabia, chamava a atenção das mulheres à sua volta.
Ali, na imagem do espelho, havia um médico envelhecido que não enriqueceu. Afinal, trabalhara para os mais pobres, e por muitos anos num núcleo de assistência infantil.
Clínico geral, não saía de sua cabeça uma frase de uma humilde paciente. O tratamento que dispensara, culminando com uma cirurgia complicada, tivera êxito. Ela agradecia a todos os santos, especialmente São Francisco, de quem era devota exaltada.
Semanas depois da alta, ela voltou ao seu consultório e ao sair disse uma frase que talvez tivesse ouvido alhures:
- Doutor, o senhor é de uma raça em extinção.
E o espelho apenas confirmava isso, do ponto de vista físico...
Tinha hoje 72 anos. Viúvo havia quatro anos. Sua esposa morrera em seus braços de infarto fulminante. Nada pôde ser feito.
Essa experiência fora dolorosa, porque salvara tanta gente em momentos semelhantes e não obtivera êxito com sua própria esposa. Essa contradição mexera com sua cabeça, meditara sobre sua espiritualidade, mas as respostas não vinham. Com a profundidade que desejava.
Seus dois filhos avançaram na vida. Um era médico como ele, cirurgião exímio. O outro advogado também bem sucedido.
Este último tivera sérios problemas havia alguns anos o que o fez abandonar a advocacia criminal depois que um bandido o procurou para defendê-lo. Ao ter à sua frente aquela celebridade com ficha criminal medida a metros, decidiu rejeitar o trabalho. O bandido o ameaçara violentamente, obrigando-o a se afastar do trabalho e se esconder por algum tempo.

O que restara de sua vida aos 72 anos? Como não poderia deixar de ser, também para ele que sempre vivera no limiar da vida e da morte, o tempo também passara.


Recordara de sua infância, de sua juventude sacrificada fazendo trabalhos avulsos e ministrando aulas para ajudar nas despesas da faculdade. Lembrava-se de seu pai, que trabalhava como operário cerca de 12 horas por dia para ajudá-lo e sua mãe que tanto o incentivara, vendendo em sua casa, roupas feitas. E de sua esposa que o encorajara ao trabalho dedicado aos mais carentes com pouco retorno econômico.
Um drama que efetivamente vivera, parecendo enredo de romance de escritor pouco inspirado.
Mas, não havia somente essas lembranças atribuladas.
Sem qualquer peso na consciência nunca esquecera a curta paixão que vivenciara havia anos após a sua formatura, trabalhando num centro de assistência infantil.
Ali, uma senhora dos seus 40 anos, lindíssima, morena de olhos verdes, prestava trabalho voluntário. Com ela convivera, por meses, duas vezes por semana.
Um dia, não se conteve e confessou:
- Dona Deyse, estou apaixonado pela senhora. Eu amo a senhora!
Para sua surpresa, ela respondeu:
- Eu também, doutor.
Aproximou-se então e deu-lhe um leve beijo, próximo dos lábios.
A mulher enrubesceu e se retirou apressada.
Nunca mais a viu e nem poderia procurá-la por saber de sua conduta e de sua vida social
Aquela lembrança, na frente do espelho fora de emoção. Um alento aos seus sacrifícios. Revivera o perfume do rosto daquela mulher que lhe inspirara tanto e que se foi.
Como o tempo...

23/05/2010

INVASÃO ALIENÍGENA: UM PERIGO PARA A HUMANIDADE?

Nunca fui muito ligado ao “fenômeno” dos discos voadores, embora não despreze o assunto.
Basta olhar para esse universo infinito e meditar um pouco. Seremos, mesmo, os únicos inteligentes – embora meio irresponsáveis como somos – nessa imensidão toda?
Confesso que, nos meus tempos de ABC, muitas vezes íamos, eu e minha esposa Ana Rosa, numa espécie de beco – rua sem saída - que era interrompida pela via Anchieta lá embaixo. A penumbra era total. A noite revelava com mais nitidez aquele céu estrelado sem fim. Ficávamos por ali algum tempo apreciando aquilo tudo – hoje seria impossível porque os tempos são de perigo - e, quem sabe, ver algum objeto não identificado vagando no espaço. Nada.
Os que dizem ter tido contato de terceiro grau descrevem as criaturas alienígenas sempre com a mesma complexão: cabeça desproporcional e oval, olhos grandes e meio puxados, baixa estatura. Será que todas essas descrições coincidem por espécie de autossugestão?

Meu conceito, a despeito do trauma que poderá causar a visita aberta de “alliens”, é de que seriam seres evoluídos porque, ao chegarem num nível de tecnologia espacial a ponto de viajarem pelo espaço infinito não podem ser destrutivos, dominadores.
Eis que ninguém menos que o cientista Stephen Hawking sobre a eventual visita dos alienígenas afirmou o seguinte:

“Se os estraterrestres nos visitarem, os resultados seriam como quando Colombo chegou à América, o não acabou nada bem para os nativos”. E argumenta mais o cientista: “...em vez de tentar achar vida no cosmos e se comunicar com esses seres extraterrestres, seria melhor que os humanos fizessem tudo o que pudessem para evitar esse contato”. (1)
É que há várias sondas da NASA que buscam planetas fora do sistema solar que poderiam conter vida inteligente. A mesma NASA enviou em 2008 a música “Across the Universe”, dos Beatles para “viajar” pelo universo tentando que seja captada e respondida por alguma inteligência nesses confins do universo.
Essa música tem estas estrofes entre outras:

“Imagens de luzes quebradas que dançam na minha frente como milhões de olhos
Eles me chamam para ir pelo universo
Pensamentos se movem como um vento incansável dentro de uma caixa de correio
Eles tropeçam cegamente enquanto fazem seu caminho pelo universo”
(...)
Sons de risos, sombras de amor estão tocando meus ouvidos abertos
Incitando e me convidando.
Ilimitado amor eterno, que brilha em minha volta como milhões de sóis,
E me chamam para ir pelo universo.”


O ponto de vista de Hawking me leva inevitavelmente para a abra de ficção do inglês Herbert G. Wells, “A Guerra do Mundos”, lançado em 1898.
A origem dessa obra memorável nascera de um comentário do irmão do autor mais ou menos assim:
“Imagine se descessem alguns marcianos e nos tratassem como nós (Inglaterra) tratamos nossas colônias”.

Na obra de Wells realmente os marcianos são dominadores e cruéis. Dois filmes se inspiraram no livro, mantendo o mesmo título: de 1953, o melhor e mais recentemente (2005) o de Steven Spielberg, neste os alienígenas são, além de assassinos, espécie de vampiros.

Todas sabem o final, não há surpresa: os invasores foram abatidos por bactérias (“as menores criaturas de Deus”) que consumiram suas resistências havendo, então, um sentido de gratidão religiosa. A humanidade fora salva.

Num conto de minha autoria mal recebido tratei da possibilidade da abdução do personagem, dando-se o trauma à alma de modo até amargo com a revelação de que pouco valem as conquistas materiais que obtemos e usufruímos. Algo utópico, uma renúncia que poucos se atrevem a encarar. Deixo uma interrogação sobre o que realmente se passou com o personagem embora fosse afetado psicologicamente.
Aquele trauma que acima imagino que se daria se aparecessem formalmente os ETs por aqui para o mundo inteiro ver. (2 e 3)

Bem, para estabelecer espécie de contraposição à seriedade do tema, deixo algumas linhas de uma música carnavalesca que não consigo esquecer, da década de 50, creio – não encontrei nada dela na internet, nem autor nem a época precisa – que proclama também, num sentido otimista mas jocoso a visita dos marcianos, mais ou menos assim:

Desceu um disco voador
Na praia do Arpoador,
O marciano foi pescar uma serei na areia
Essa turma e muito forte,
A turma lá de marte é de morte
Passou pra trás a marciana
Por um broto de Copacabana
Bebeu cachaça com vermute
Pois a pinga lá de Marte é um chute...”


Não me interpretem mal, hem!

Referências no texto:

(1) “O Estado de São Paulo” de 10.05.2010, transcrevendo artigo de Alok Jha do “The Guardian”. As afirmações de Stephen Hawking foram feitas em documentário para o Discovery Channel. Hawking é doutor em Cosmologia, autor do livro “Uma breve história do tempo”.

Sofre de doença degenerativa se comunicando por um computador acoplado à sua cadeira de rodas, no qual “um software permite que ele escolha palavras de uma lista e as reproduza através de um sintetizador de voz.” (V. meu artigo “Dos sem religião” de 25.04.2010)

(2) O livro de H. G. Wells foi utilizado por Orson Welles na radio CBS - Columbia Broadcasting, programa “Radioteatro Mercury” numa transmissão para Dia das Bruxas, 30 de outubro de 1938. Essa memorável dramatização da invasão marciana levou pânico a milhares americanos com intensa repercussão, produzindo manchetes pelo mundo afora. Todos sabem que Orson Wells depois se tornaria diretor e ator famoso de cinema.

(3) “O Solitário - Delírios e Altruísmos”, neste blog, publicação de 02.03.2009)


Foto (1): Cena do filme de 1953 "Guerra dos Mundos". (Fonte: Google Imagens)
Foto (2): Stephen Hawking (Fontes diversas via Google Imagens)

16/05/2010

SOLIDÃO

O sujeito era culto, lia muito e falava pelo menos quatro idiomas fluentemente. Fora executivo de multinacional.

Sua vida fora sempre muito confusa. Quando mais jovem frequentara a noite e as denominadas "bocas" de São Paulo.
Nesse ambiente conheceu aquela que seria mais tarde sua esposa de papel passado, uma mulher que embora frequentasse aqueles pontos, preservava a sua dignidade com discrição. Sua vida privada era pouco conhecida.
Mas, a forma como e local onde começou o relacionamento acabaria por provocar sérios atritos mais tarde entre o casal até porque mantinha ela amizades antigas e estranhas que permaneceram no tempo e atrapalhavam o relacionamento incomum de ambos.
No limite do insuportável, o casal se separou de modo traumático. Por fim um acordo judicial proveitoso. Superadas todas essas batalhas, diria ele aliviado:
- Depois de tudo isso que passei, vou voltar a "curtir" a noite de São Paulo.
Muito tempo depois eu o encontro num restaurante italiano, sozinho, magro como sempre fora, a espera da comida, tendo a frente uma garrafa pequena de vinho. Deixara de fumar, ele que era inveterado. Depois dos cumprimentos, cada um dizendo o que fazia, pergunto:
- Como vai a noite de São Paulo?
- Não há mais essa de noite em São Paulo. Fico a maior parte do tempo em casa lendo. As mulheres da noite são incapazes de soletrar sequer o abecedário, seu próprio nome, respondeu ele contrariado.
Na verdade, dera-se conta de que os tempos mudaram e que ele mudara.
Havia algo mais, uma ponta de decepção. Não encontrara Maria Benedita, uma mulata vistosa, dentada, que soube estar presa injustamente como traficante, num pequeno presídio feminino numa cidade que sequer gravara o nome, a uns 200 quilômetros dali, com quem tivera (ou pensara ter) algo além do simples prazer sensual naqueles tempos.
Soubera por acaso, ao cortar caminho por aqueles fundos da avenida São João e pelo bairro Santa Cecília. Dera de cara com uma antiga conhecida que morava por ali, escondida num apartamento sombrio:
- Ela vivia bem com um sujeito decente que era traficante. Ela nunca desconfiou. Um dia a polícia bateu na sua porta e encontrou um pacote de droga escondido sobre a caixa d’ água do banheiro. Foi injustamente acusada de cúmplice...
Voltou para os livros e para a solidão.
- As mulheres de seu tempo, mesmo frequentando os inferninhos eram diferentes? Eram?
Não respondeu.
- Solidão com livros é solidão? insisti como forma de apoio. - E afinal, você conseguiu ler inteiro o Ulisses de James Joyce? emendei, as mil páginas do livro que da última vez que falei com ele, há tempos, reclamava que a obra era chata mas que a leria até o fim de qualquer jeito.
Olhou-me fixamente, um sorriso amarelo como resposta.
Começara a se dar conta que aqueles tempos haviam morrido - e ele próprio.
Fui para outra mesa.
Ele saiu em silêncio sem um sinal de despedida.
Nunca mais o vi.

Figura: Artista João Werner
Foto da avenida São João - cdcc.usp.br (Google imagens)

09/05/2010

VEGETARIANO ENRUSTIDO: AS RECEITAS

Você torce pelo touro todo ferido com aqueles espadins, odiando o toureiro com aquela roupinha ridícula? Ai, o touro acerta o toureiro e você grita como se fosse um gol do seu time num momento de decisão? Espera ai. E a violência que você rejeita filosoficamente?
- Bem a violência gera a violência, especialmente quando há atos brutais de covardia, como se dá com o touro acuado - esses toureiros efeminados só merecem chifradas mesmo.
Mau sinal.
Ai você considera um negócio até desonesto os rodeios, pela brutalização dos animais e um bando de idiotas aqueles montadores? Que podem se arrebentar no chão com os saltos do touro sofrendo pelas amarras na sua genitália? E você pensa alto:
- Tomara que se arrebentem, sabe.
Sinal de “perigo”. Você é um forte candidato ao vegetarianismo. Mas, saiba, você pode pensar ou tentar sem chegar a tanto. Porque o caminho é árduo. Mais fácil deixar de fumar mesmo que você nunca tenha fumado.

Começa assim:
Rejeita um bife de vez em quando, pensando no sofrimento da vaca, fala para o garçom passar reto com os espetos, se enche de salada, no queijinho assado e guarnições e disfarça.
Pergunta que ainda não vai calar:
- Você não está comendo carne? Esta picanha sangrenta está uma delícia.
Você mente:
- Sabe, hoje não estou me sentindo bem. Meu médico me recomendou não comer nada gorduroso.
Com o tempo você abole a carne vermelha e seguramente terá que explicar porque você assim decidiu e deverá estar preparado para responder os motivos:
Religioso? Filosófico? Regime especial? O quê, o quê, hem?
Você já começa a ser o diferente nos almoços de trabalho e sociais.
Nem uns hambúrgueres no McDonalds? Ah, tentação, com aquelas fritas sequinhas e um copo imenso de guaraná. Difícil, hem.
No churrasco com os amigos você fará “churrasco” de pão e molhinho. Conseguirá (mesmo) rejeitar a linguicinha e o coraçãozinho de frango no espeto?
Epa, mas o coraçãozinho é de frango, carne branca. Acho que vou avançar...
- Será que não vai mais comer nem frango, nem nada, você se questiona?
E responde:
- Sei não, acho que não vou, até porque a “produção” é também de imensa crueldade.
E a partir daí não tem jeito. Você se assume, quase vegetariano, não radical, porque não rejeita um peixe (já pensou o “filhote” assado, tentação!), uns nacos de bacalhau, uns frutos do mar, uns camarões...
Até que um dia no mercado você encara os olhos de peixe morto te assediando. Ah, não o peixe não!
E devagar você começa a se questionar. Afinal, o peixe não é de carne? Mas tão saborosa, tão cheia de vitaminas!
E vagarosamente começa a rejeitar o peixe:
- Será possível? Com vou explicar isso em casa? E nas minhas viagens, vou comer o quê?
A resposta vem espontânea:
- Avance nas saladas, no grão-de-bico, na soja temperada. Massa, meu amigo, mas cuidado com a barriga! As pizzas estão por aí, em qualquer canto tentando de dia e de noite.

Pronto, agora você é consumidor de brócolis, couves, abobrinhas refogadas e a milanesa, pimentões, quiabos e jilós, quibes e estrogonofe de composto (carne) de soja...e por aí vai! E frutas em profusão.

Que mudança, hem?
Ai, nos coquetéis você se obriga a perguntar ao garçom qual o recheio da empadinha com jeito apetitoso:
- É de palmito?
- Palmito e frango, responde exultante o garçom ávido por presenciar a gula coletiva.
Você rejeita a empadinha porque botou na cabeça que frango desfiado cheira pena molhada. Você pode degustar uns canapés de conteúdo não identificado. Feche os olhos e arrisque. Ou fique só no guaraná e na coca-cola...
Renúncias são renúncias.
E se prepare. Você faz uma visita a um velho amigo e em sua homenagem ele prepara língua ao molho pardo. Você faz tudo para não jogar o estômago no prato e dá uma desculpa a mais esfarrapada possível e só fica no arroz branco e no tomate da salada.
A esposa do seu amigo, constrangida, sugere fritar uns ovos, uma omelete.
Não, no ovo você ainda não chegou e não quer nem pensar! Você aceita, toma uns goles de vinho e tudo acaba bem. Todos alegres, contando causos e piadas. Exageros e gafes com os efeitos do vinho avançando.
Ainda bem, ainda bem. Eta dificuldade!
Com o tempo esses percalços deixarão de ocorrer. Não estranhe se você deixar de ser convidado para aqueles grandes encontros e reuniões regados a churrasco e linguicinhas. E chope, é claro.
Todos os seus amigos, seus familiares, descobrem que você é um chato.
Mas um chato feliz que torce pelo touro, sempre, sem crises de consciência.
Talvez você até entre em estudos filosóficos sobre o enigma da existência dos animais, o amor e o respeito que merecem. Aí você atingiu o clímax.





Fotos:
(i)Secretaria do Abastecimento de São Paulo (via Google imagens)
(ii)foradomanual.blogspot.com (via Google imagens)

02/05/2010

PESSIMISTA, MAS ESPERANÇOSO

Não há jeito. Qualquer autor, numa regra bem cerrada, escreve por experiência vivida, por conhecer episódios que o inspiram a escrever, mas sempre relatando passagens do passado. Ainda que escrita no presente, isto é, o relato se dando “hoje”. O cronista mais ainda. Ele também se vale de imagens do cotidiano ou de sua própria vida. No mais, se “viajar” para o futuro, entra no campo do prognóstico ou de ficção.


O ano de 1965 foi para mim, “de ouro”, de realizações que ficarão comigo para sempre. Lá eclodiam as músicas orquestradas por Ray Coniff, da jovem guarda com Roberto Carlos e a bossa nova com músicas lindíssimas todas ainda por aí. A adolescência estendida ou a maturidade postergada um pouco, as oportunidades que obtive ou que criei no meio estudantil de São Caetano do Sul ou na imprensa local deram-me naquele ano, quando deixava o colegial, um sentido de realização, de superação convivendo com amigos dedicados e verdadeiros. Nesse âmbito, sentira que “conquistara” a cidade.
Já naqueles idos deixara apenas um pouco de lado aqueles meus princípios e estudos esotéricos que tanto me haviam influenciado anos antes.
O rosacrucianismo, muito em voga então, foi para mim, pelos exercícios mentais que propunha, espécie de autoajuda. Todo esse conjunto e, depois o aprofundamento desses estudos, deram-me uma visão que hoje não poderei mais esquecer. Não poderei apagar de minha mente. Essas experiência ficaram comigo e me influenciam.
Lembro-me - e relato novamente se já o fiz -, quando no clássico, de um professor de filosofia, sujeito humilde, de pequena complexão, competente e culto, muito tolerante comigo porque suportava as minhas intervenções expondo esses princípios, em contraposição às suas valiosas lições em classe. Entoava, então, um samba sem ritmo e absolutamente desconexo que resultava, porém, em excelentes notas, eu que era péssimo aluno.
Foi desse tempo, não sei bem em que momento, embora reconheça alguma influência de minha falecida irmã, em que comecei a rejeitar com muita lentidão a carne vermelha e depois todas as outras. Essa renúncia é dificílima. Voltarei a esse assunto.
Em que momento comecei a me apegar aos animais? Talvez desde minha infância mas não me dera conta disso, então.

Alerto que durante minha vida profissional depois daqueles anos, fui obrigado a esquecer idealismos. Ora, idealismo sim, mas para servir a empresa, para garantia do seu lucro. Quantos vezes me vi naquelas quatro paredes, abatido, sentindo que as obrigações impostas pela empresa significavam não só para mim mas para muitos, verdadeiro “cemitério de talentos”.

Hoje, me situo nesse mundo louco. Deparo-me sim com jovens muito inteligentes e realizadores, mas não sou otimista.
O raciocínio “objetivo” predomina. Explico: esse raciocínio converte uma árvore centenária num valor econômico; uma mata sem qualquer valor desde que vire pasto, a extração da madeira a preço da devastação irresponsável, a predominância da proposição econômica em tudo. A violência política cuja marca indelével é o 11 de setembro – o ataque às torres gêmeas de Nova York. E hoje, precisamente hoje, a imensa mancha de óleo que cresce de modo assustador no golfo do México após a explosão e afundamento da plataforma de extração de petróleo sem que esses indivíduos que a controlavam tivessem sequer pensado numa alternativa em caso de desastre grave ou não. Lucro era e é palavra. Estamos condenados a assistir de novo aquelas cenas dolorosas de aves e animais marinhos em agonia, encharcados daquele óleo negro e bruto, inapelável.
O raciocínio “subjetivo” dá à mata seu valor como fonte de vida, não aceita sua destruição para converter sua área sagrada em pasto, que se emociona com um riacho ainda preservado e limpo longe da ação humana nefasta, não se envergonha em fazer poesia sobre suas belezas, sobre seus pássaros e borboletas, que não faz da vida uma proposição econômica como fim, mas como meio de sobrevivência digna. Que olha nos olhos dos animais e se pergunta como aquela vida se movimenta, como ela se dá, como é dirigida, quem a dirige? E a respeita.

A violência se propaga. Há uma disputa ferrenha pela conquista da tecnologia nuclear para fins não pacíficos. Afinal a violência humana cotidiana ceifa vidas por uma carteira sem dinheiro e quaisquer outros motivos fúteis. Ou uma bomba que ceifa dezenas de uma só vez. Há focos crescentes de desrespeito às crianças por toda sorte de violências. Há notória vinculação entre esses atos criminosos todos, espécie de encorajamento e inspiração maléfica.
Afinal, para onde vamos?
Há previsões apocalípticas do calendário maia que prevê o final dos tempos nos últimos dias de 2012, que coincidem com as profecias de Nostradamus. Não sei e nem me animo a ir além dessa citação. Se assim não for, estarei ingressando nos prognósticos ou na ficção, válidos, mas não aqui e agora.
Mas, merecemos um começar de novo. E como merecemos.
Sou pessimista, sim, mas esperançoso. Assumo a contradição entre os dois conceitos.

Por tudo isso, mesmo com os dois pés em 2010, sem reservas, me olho no espelho de 1965
Comparo e me emociono. Não por saudosismos imaturos, mas por comparar as realidades, hoje tão duras, amargas.


Foto: 1964 - minha participação num concurso de oratória no colégio.

25/04/2010

AMARGURAS, A BUSCA DO REENCONTRO

Na obra prima de Dostoievski, “Crime e Castigo”, há cenas impressionantes. Histórias curtas dentro do enredo principal.
Uma delas é o patético relato do personagem Marmieládov, um alcoólatra inveterado que anula a família, deixa-a na miséria absoluta por conta do vício. Ao chegar à sua pobre moradia, sua penitência eram as surras que a mulher desesperada lhe impunha:
“– Isso me consola! Não creia que isso seja para mim um sofrimento, mas sim um prazer, senhor! – exclamou ele, enquanto Ekatierina Ivánovena lhe sacudia com força a cabeça, chegando mesmo a bater com ela no assoalho”.



O relato que faço é de ouvir contar, mas posso assumir que tem algum fundo de verdade - baseado em fatos “reais”.
Conheço o local em São Caetano: a adega, que não sei se ainda existe, ficava numa avenida que ia do centro até o rio Tamanduateí, cruzando a linha de ferro. A igreja é conhecida como a matriz “velha” da cidade e fica no bairro da Fundação.

A velha senhora todo o domingo, vindo do armazém passava na frente da adega. Num dia desses de sol, olhando para dentro daquele local cheio de sombras, sempre obscurecido e sórdido, foi assaltada, segundo ela, por visões aterradoras.
Conforme relatou à filha:
- Eu vi umas sombras horríveis lá dentro daquela adega, monstruosas, rindo debochadas dos bêbados, se misturando com eles, encostadas nas suas narinas como se tirasse o oxigênio delas dali.
- Mamãe, a senhora não viu nada, a senhora tomou muito sol na cabeça. Está muito calor. Venha que lhe dou um copo de água geladinha e depois deite-se um pouco no sofá!
- Não adianta você duvidar. Eu vi, eu vi e jamais vou esquecer.


No relato de um sonho aterrador que assalta o personagem Raskólnikov,no “Crime e Castigo” no qual há a descrição pavorosa de bêbados massacrando até a morte uma frágil eguazinha, o grande autor russo descreve as imediações da taberna:
“Havia sempre ali uma turba que berrava, ria, se enfurecia e brigava, ou que cantava com voz rouca coisas de apavorar! Nos arredores da taberna sempre andavam bêbados de rostos horríveis!... (...) A passagem que conduz à taberna está sempre coberta de uma poeira negra”.


Mal sabia aquela velha senhora que, cerca de uma hora depois de ter visto aquelas sobras horríveis em volta dos embriagados, deu-se um fenômeno inexplicado.
Um desses alcoólatras de fim-de-semana e às vezes de meio de semana, completamente tonto por tudo o que bebera, ergueu o copo como se fosse um troféu, voltou-se para o sol lá fora e ergueu a cabeça para o último gole, a última gota.
Olhou para o fundo do copo, a luz do sol penetrou por ele, como um caleidoscópio. Como se levasse um violento soco no estômago, curvou-se, cambaleou para trás e caiu sentado violentamente, como se toda a gravidade lhe puxasse para baixo. O copo espatifou-se no chão. Encostou-se sentado no balcão, naquele chão imundo, sem que os demais companheiros de copo lhe dessem qualquer atenção ou ajuda. Porque aquele tipo de coisa não era incomum. Alguns até caiam pelas sarjetas.
Passaram-se os minutos, até que o dono da adega, já preocupado, deu a volta no balcão, varreu num canto os cacos do copo e ergueu o ébrio sem qualquer consideração:
- Vai embora, é hora de ir embora.
Com a ajuda, levantou, cambaleando, curvado com dores terríveis no estômago.
Aos trancos e barrancos chegou em casa. O portão estava aberto como se fosse esperado. A porta destrancada. Olhou para a mulher com os olhos vermelhos porque chorara, para os filhos envergonhados, o almoço já frio no fogão, desviou-se de todos e foi para o quarto.
Sentou-se na cama, cobriu o rosto com as duas mãos, chorou copiosamente e ali ficou por horas.
Envergonhado, nada comeu e no dia seguinte, servindo-se do café ralo com pão seco o possível naquela situação, sem erguer os olhos, a ressaca horrorosa afetando sua mente, dores horríveis no estômago foi para o trabalho que lhe restava. Ainda.

O que viu naquele caleidoscópio do fundo do copo? Nunca revelou. Nunca se soube.


Depois daquele domingo, muitas vezes foi visto, quando aberta, sentado num canto da velha matriz, com as duas mãos cobrindo o rosto e ali permanecia alguns minutos, creio que num processo de reencontro consigo mesmo, nem tanto de fé.




Aqueles momentos de solidão, ademais, eram cruciais, a fronteira entre o antes ou depois do almoço, quando o aperitivo apetece e, não resistindo à tentação, poderia fazê-lo voltar à adega, mesmo com a dor de estômago e tudo que despontava sempre que pensava nisso.

Não saberei informar o desfecho deste relato. Perdi o contato com quem poderia me informar. A única coisa que posso dizer é que torço muito para que tenha ele se reencontrado e nesse caso obtido verdadeira redenção. Torço.

Foto: Matriz "velha" de São Caetano (Google Imagens)

18/04/2010

SILÊNCIOS

Esclarecimentos


Tenho postado aqui crônicas que falam de animais, vegetarianismo, de sensações incomuns, de sensibilidades, de experiências pessoais gratificantes ou não e até de ternuras.
Gostaria de alertar que esse é o meu perfil ideal, aquela veia que tenta encobrir ou superar o meu perfil real: tenho fama de “pavio curto” (agora nem tanto), tenso e impaciente. Por força de minha profissão que exerço há décadas há casos em que me obrigo a ser implacável e “imperdoável”.
Não sou criminalista, mas acompanhei casos à distância. Alguns episódios são crônicas reais que revelam faces do submundo.
Eis que de repente publico uma delas. Espero que não afugente os que me acompanham.
Essa crônica abaixo, já foi postada, não faz muito no blog “Prosa e Verso de Boteco” (http://prosaeversodeboteco.zip.net/). Eu a republico, agora, aqui, como uma forma de reforçar aquele "perfil ideal” que, quem sabe, vá ajudando a superar o meu perfil “real”. Sabem, essas questões de “ternura”, “apreço” e quejandos?



PÁSSAROS COMILÕES

Manhã de domingo, horário novo, verdadeiro, volto mais cansado do que o normal de minhas andanças dominicais de uma hora e tanto. No parque da rua do Porto em Piracicaba.
É que, no Carnaval, principalmente na terça-feira, fui subjugado por uma gripe violenta. Há sequelas, ainda. Minha filha me diz ao fone que é coisa de velho. Reajo – velho não, jamais; antigo, sim! Ao fundo ouço aqueles ruidinhos enternecedores próprios de bebezinhos. Eram as gêmeas, agarradas, reclamando sua atenção.
Acomodo-me na minha poltrona favorita, ou única no meu pequeno escritório aqui de casa.
Antes, bem cedo, como que anunciado o fim do horário de verão, maritacas barulhentas empoleiradas no coqueiro ao lado do quarto, emitiam aquele som muito próprio delas, agudo, alto.
Baixa o silêncio total nas redondezas.
Da janela fixo-me nos movimentos dos passarinhos que avançam sobre cuias de mamão e bananas sobre o muro, que diariamente lhes são garantidas. Deliciam-se, afoitos, disputam, derrubam as frutas e quando me percebem espiando esvoaçam...fogem, mas voltam dali a pouco. Não que eu tenha feito qualquer movimento para espantá-los. Erguem a cabecinha, reviram-na a quase 180º e aqueles olhinhos tentam divisar algum inimigo, alguma ameaça. São as graças divinas. Por perto só eu que os amo, mas eles não acreditam nisso. Desconfiam, porque têm razões para desconfiar.

Uma tarde flagrei um papagaio também avançando sobre os restos de frutas que sobraram. Nunca vi ave tão colorida e brilhante. Infelizmente não voltou mais.


São nesses momentos que me volto para o que fui, para o que sou e o que deixei de ser, embora quisesse e, afinal, o que me resta?
Com todas as atribulações, meditando sobre os encantos e desencantos da profissão que exerço não por diletantismo, na fuga de um passarinho azulzinho, a resposta sutil me veio de não sei de onde:
- Te resta ser feliz, ô meu!

(“Ser feliz”, sem pessimismos e sob risco de cair no lugar comum, está muito difícil neste mundo de hoje, com tantas desgraças, tantas tragédias, tantas catástrofes e tantas ameaças diárias; essa relatividade já tentei demonstrar numa velha crônica, aqui postada há pouco, “Conceito de felicidade” em 17.01.2010)


Foto: “Papagaios empoleirados num fio elétrico”, de Eduardo Pimentel Martins extraída de filmagem em Extrema – Sul de Minas.

11/04/2010

TERNURA, essa palavra feminina...(?)

Explicação

Nesta crônica revelarei espécie de balanço de minha convivência profissional e pessoal. Por óbvias razões excluo os laços familiares até porque já escrevi sobre esses laços.
A palavra ternura, sempre a usei com muito cuidado. Me perdoem, mas me parece que ela tem mais um uso feminino. Não me sinto à vontade, por exemplo, em dizer que meu amigo tal é terno. Agora a mulher tem toda a autoridade para dizer que fulano exala ternura e que sua amiga tal é terna (a palavra é feminina!).
Nesse passo, em vez de ternura, usarei apreço que no Aurélio significa “consideração e estima dispensadas a alguém”. Desapreço, então, será a desconsideração e não estima dispensada a alguém.
Tudo que direi a seguir não tem qualquer sentido de vaidade ao enaltecer alguns acontecimentos que me marcaram. A minha (des) importância é conhecida dos meus amigos e circunstantes. É que, se eu não falar desses acontecimentos, se perde a crônica.
Fui agraciado por inumeráveis e até pequenos gestos carinhosos que me surpreenderam e ficarão comigo para sempre. Até devo já ter relatado alguns por aí ou por aqui.(pequenas ternuras?).
Mas há outros que extrapolam e me levam a fazer, em torno deles, um relato mais aprofundado.


Apreços, desapreços e...ternuras

Trabalhei por décadas na indústria na automobilística.
Já me referi a viagens profissionais que fiz ao exterior, que não foram tantas, mas significativas.
Não pensem que tudo nessa minha vida profissional foi fácil? Não, tudo foi conquistado com suor e lágrimas. Diria mesmo que se para sobreviver há que ser eficiente 50% e político outros 50%, saibam que fui eficiente num nível em torno de 90%. Por isso sobrevivi. Nunca soube fazer política dentro da empresa, não consigo bajular e não consigo me comunicar bem com aqueles que considero imbecis, soberbos.
Assim, se sobrevivi tantos anos nessa indústria se deu pelo meu desempenho.
Um dia saí da empresa Chrysler. Minha fábrica (Santo André) estava em processo de extinção.
Fui, sim, homenageado porque entre outros dera condições, no seu clube na Estrada do Mar, de fazer ali a festa de Natal. Se querem saber, o sindicalista Lula, já muito badalado mesmo pelos executivos empresariais, lá esteve.
Depois virei, num campeonato interno de futebol de salão, nome de taça.

A VW comprou as instalações da Chrysler. Anos depois, fui convidado, como homenageado, entre outros, por ocasião das comemorações do 40° aniversário do VW Clube (maio de 1998) pelo que eu havia feito no antigo Clube-Chrysler que fora por aquele herdado.
Claro que dois amigos leais puseram meu nome para ser lembrado. Apreços.

Ainda na minha atividade profissional dentro da empresa, pela primeira vez senti a sola da demissão, numa poderosa multinacional da região de Piracicaba.
Certo dia surgira novo presidente um americano bastante arrogante. Um sujeito alto, loiro, cabelos mais para o grisalho, rosto magro e avermelhado, nariz empinado, um perfeito capataz, tolo mesmo. Falava um português razoável.
Viera para proceder à reestruturação da empresa. Iria “cortar na carne”, anunciava a “rádio peão”.
Criou-se um clima de expectativa e terror.
Na reunião decisiva da reestruturação, a demissão sobrou para mim. Em meu lugar, assumiria um bajulador que vinha de área estranha àquela que viria a ocupar, exatamente porque era bajulador.
Pelo que soube mais tarde, todos aqueles gerentes a quem dera apoio, sempre, haviam também votado pela minha demissão.
Passado aquele momento amargo, inédito, porque nunca tivera tal experiência, refleti muito sobre o acontecido. No meu íntimo, me perguntava se, rigorosamente, não desejara em muitos momentos deixar a empresa que perdera aquele brilho de antes.
A verdade é que essa experiência virara um pesadelo. Muitos se sucederam. Via-me chegando à empresa pela manhã, rumava para minha sala, não a encontrava ou havia alguém estranho sem rosto no meu lugar. Caminhava, então, pela fábrica como um fantasma, via sem ser visto, renovando a angustia da demissão ao acordar.
Sabia agora, após administrar centenas de demissões nas várias multinacionais em que trabalhei os efeitos danosos que produziam nos demitidos:
- Recebera minha paga, pensava. Sentira o amargor do fel.
A despeito da demissão, fiquei mais uns meses treinando alguém para um determinado tipo de tarefas.
Todos os colegas cordiais de antes – difícil “amigos” nos muros da empresa -, subordinados se afastaram solenemente como se qualquer aproximação significasse o contagio de doença incurável. Esses desavisados se esqueceram que estavam numa fila esperando a vez. E ela foi chegando...
O desapreço se materializou, então, do modo mais amargo. Romperam-se os laços e o dever de gratidão.
Apenas três colegas mantiveram a mesma harmonia de antes. Sabia por eles que nem tudo estava perdido.


Voltava de São Paulo um pouco deprimido. O tráfego estivera intenso, congestionamentos nas Marginais, tudo fazendo subir os níveis de poluição e de cansaço.
Minha depressão, além dessas razões, devia-se mais pelo que assistira numa agência do INSS. Entre todos aqueles humildes que buscavam com resignação seus direitos no imenso salão, sentada num canto, chamou-me a atenção, uma senhora envelhecida, um pouco obesa, com o rosto sulcado por incontáveis riscos miúdos de rugas.
Suas mãos esbranquiçadas, como se seus dedos estivessem gastos e, no pulso, feridas mal curadas, notando-se que o tratamento seria precário.
Por acaso ouvi sua história: trabalhava havia mais de 30 anos, sempre em serviços modestos de doméstica e, nos últimos tempos, sem poder fazer muito esforço, achara que se daria bem como lavadeira de roupas.
À medida que o tempo foi passando, suas mãos começaram a ser afetadas pelo sabão, pelos detergentes, pelo cloro, resultando em dores, naquelas feridas nos pulsos, de tal ordem que não poderia mais trabalhar.
Bem atendida pela funcionária da instituição, foi-lhe explicado que pelo pouco tempo que contribuíra para a previdência, provavelmente nunca se aposentasse, porque havia uma "tabela de progressão" de contribuições que a levaria a contribuir ainda por muitos anos.
Em princípio, nada poderia ser feito para ela, salvo um afastamento por doença ou invalidez. Meio confusa, nada entendendo, encarou-me com aquele rosto enrugado, olhos cansados e apenas disse, quase em desespero:
- Ai meu Deus...
Saiu lentamente do local, em passos curtos, como se carregasse nas costas um pesado fardo.
Para essa mulher, não havia respostas que pudessem consolá-la. E de nada adiantaria a imensa ternura que sentira por ela, pela sua humildade, pelo seu rosto cansado, pelas suas rugas. A humildade transmite uma réstia de beleza, apesar de tudo. A vida do brasileiro que mora precariamente, nos morros, nas favelas, lutadores e esquecidos. Aqui senti mais que apreço, ternura e decepção diante da minha impotência em ajudá-la. Quem sabe a invalidez a tenha aposentado. Quem sabe.


Já relatei esta passagem (v. “Raízes Sancaetanenses - I de 21.06.2009) para mim muito mais do que manifestação de apreço.
Não conseguirei esquecer por ser eu quem era, um garotão meio inseguro perante o prefeito Anacleto Campanella de São Caetano do Sul e sua forte influência em todo o ABC.
Dei-me conta de Campanella, no seu primeiro mandato, quando da inauguração do denominado viaduto dos Autonomistas em meados da década de 50, uma alternativa para aqueles que precisassem cruzar as linhas da então “Santos a Jundiaí”, vindo do Bairro da Fundação para o Centro ou no trajeto oposto.
Moleque, encolhido, acompanhei a solenidade e o discurso do prefeito.
Anos depois, no segundo mandato, por programação de jornal semanal capenga me encorajei, numa tarde de sol, em chegar ao seu gabinete para uma mal programada entrevista. Sou bem recebido pelo seu “eterno” secretário e aguardo na ante-sala.
Minutos depois, sou conduzido ao gabinete. Ele me encara com aquele seu jeito irreverente, olhando para os papeis, responde algumas perguntas, levanta-se impaciente daquela mesa arredondada de trabalho sai apressado do gabinete e me ordena:
- Venha comigo.
Saímos do prédio da Prefeitura. No estacionamento, ele abre a porta do carro, manda que eu entre e segue nos rumos de Santo André.
Paramos no próspero Diário do Grande ABC e ali ele me apresentou para o diretor de redação do jornal. Escrevi para aquele jornal por algum tempo. Perdi o pique pela minha timidez e insegurança, modalidades do meu perfil.
Em 1969, como deputado federal, logo depois do AI-5 do regime militar fora ele cassado na "lista" de 12.01.1969. Encontrei-me com ele logo depois. Não demonstrara mas é certo que sentira o golpe.
Mais tarde, doente, vez por outra eu o encontrava abatido na Barbearia do Ciccilo que fora um ponto político importante em São Caetano.
Sempre falei com ele porque havia aquele gesto de anos antes que até hoje me surpreende, porque desinteressado e de alto apreço.
Longe há anos da cidade, sua presença se dá com o time de futebol do São Caetano que manda os jogos no estádio municipal batizado com o seu nome: Anacleto Campanella.
Chamo, afinal, esse gesto de apreço ou de ternura?

O que incomoda é que tudo passou de repente, numa velocidade...da vida.


Ternuras desprendidas, incondicionais

Tenho falado muito de animais nestas crônicas. Espero não cansar os que me acompanham. Essas crônicas, creio, estejam insertas em “edições” passadas neste “Temas” ou por aí.
Resumo:
. Da vaca e do bezerro que servi água num dia de sol escaldante: o olhar manso e doce da vaca agradecida;
. Do quati domesticado: sua festa subindo pelos meus ombros e fazendo cafuné na minha cabeça com suas patas agudas;
. Das abelhas nervosas que rodeavam meu rosto sem nunca me atacar;
. Do leitãozinho esfaqueado mortalmente que me encarou decepcionado pelo que eu “deixara fazer”;
. Da corujinha perneta que diariamente, talvez agradecida por ter sido salva, que pousara no coqueiro do meu quintal por muito tempo;
. Dos gambazinhos frágeis que aparecem por aqui;
. Dos gatos vadios que também apareceram: um deles me olhava com aquele ar maroto após meus gritos pelas suas mordidas no meu pé. Sumiu como chegou; o mais inteligente quando deitado na grama parecia um trapo, foi atropelado. Uma perda;
. Do escorpião que não conseguiu me picar (Sorte? E se foi o que muda?)
. Dos múltiplos passarinhos comedores de bananas e pedaços de mamão, no muro, ao lado do meu escritório que me fiscalizam desconfiados de alguma traição – que nunca virá - voltarei com eles;

. Da minha cachorrinha preta, com 17 anos que me chama sem parar, latindo, da tarde às 8h00 da noite enquanto não for visitá-la e trocar sua água. Ela come até gomos de mexerica que colho do pé. Alguns minutos com ela, afagos, carinhos e ela sossega.

É isso ai


Fotos:
(i) Anacleto Campanella (from tribunadoabc.com.br - Google imagem)
(ii) Imagens parciais de minha despedida da Chrysler em 11/1981 e o "meu" time no mesmo dia.
(iii) Eu e a cachorrinha Preta, de novo, no seu habitat (foto: Milton P. Martins).

04/04/2010

PIRÂMIDES DE TEOTIHUACAN...e os arrepios da brisa (?)

Há anos, como uma forma de treinamento – especialmente no que se referia às estratégias de negociações sindicais - e adquirir no mais alguma visão internacional fui escalado para conhecer alguns países latino-americanos, incluindo o México.
Quando aportei no México, na capital, claro, já batia, então, forte, a saudade dos meus e do próprio Brasil. Já me cansara, efetivamente, de "hablar o portunhol". Já estava quase chegando ao “espanhol puro”.

O México não seria a última parada. Haveria, ainda, a Venezuela, então um país com forte moeda, pelo seu petróleo, que irrompia "aqui ou ali" na versão de um bem humorado venezuelano que lá conheci e ainda uma passada por Manaus.

Naqueles idos, as comunicações não tinham a desenvoltura e as facilidades de hoje

Num entardecer, depois de uma visita atribulada à fábrica de automóveis na cidade
de Toluca, meio deprimido, não tanto pelo "home sick", mas pela recepção impaciente que recebera nessa minha estada profissional, dentro de um carro magnífico, mal me dava conta dos recantos mexicanos.

Rumávamos para meu hotel e eu me perguntava do desequilíbrio daquele dia. “Afinal, pensava, não seria uma rara oportunidade que teriam os mexicanos que me recepcionaram de comparar os países e os modos de vida”? Naquele momento a oportunidade se perdera.

Não me dera vontade de começar qualquer conversa com o motorista, um sujeito afável e amistoso que não merecia minha indiferença. Era eu quem perdia aquela mesma oportunidade.

Diante do meu silêncio deselegante, ligou o rádio. A música que tocava, naquele instante, fora um alento: "Jesus Cristo" de Roberto Carlos. Naquele país distante, apertado pela saudade, nada mais reconfortante que ouvir Roberto Carlos com aquele seu apelo: "Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui..."

Fora como um chamamento, uma sacudida para me lembrar da religiosidade dos mexicanos. Nas fábricas que visitei, em vários locais, mesmo na linha de montagem, havia altares com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. A reverência permanente à santa.
















Visitando a magnífica Catedral Metropolitana da cidade, num dia de solenidade religiosa, mal pude me mexer dentro da igreja de tão lotada.
Num dos últimos dias no México, numa providencial manhã de folga, fui visitar as pirâmides de Teotihuacan, nas proximidades da cidade.
Essas pirâmides situam-se num local que chamaria de imenso largo escampado. São suntuosas e impressionantes construções de pedra, com degraus com cerca de 50 cm de altura.

O dia estava ensolarado e quente, o céu azul. Soprava uma leve brisa.
O conjunto das pirâmides transmitia, com o contraste do céu e do sol, um sentido enigmático. Ao me aproximar de seus domínios, fui acometido de leve mas perceptível arrepio que circulou pelos meus braços.
Escalei a pirâmide do Sol, entrei nalguns de seus compartimentos com a vontade de intuir quais motivações religiosas poderiam ter inspirado tal modelo de obra.

De volta ao Brasil, pouco tempo depois, descrevia a um médico amigo as impressões desse passeio nas pirâmides de Teotihuacan. Estudioso de temas esotéricos ele me perguntou, sem qualquer expectativa, se eu não sentira algo de anormal naqueles sítios.
Relatei-lhe o arrepio, chegando ambos à conclusão de que aquela reação poderia ser resultado de vibrações que permaneciam no éter, ecoando pelos séculos, sendo captadas, eventualmente, pelo profundo magnetismo religioso que marcara o local.
Anos se passaram.
Desde aquela viagem, por muito tempo o México ocupara minha mente e espírito com muito carinho. Porque naqueles dias, e creio que ainda agora, havia interesse efetivo dos mexicanos pelas coisas brasileiras, especialmente pelo futebol e pela música.
Em 1992, por ocasião das comemorações do 5° século do descobrimento da América, as diversificadas pesquisas e indagações que essas comemorações propiciaram, só vieram confirmar minha relativa ignorância sobre os astecas.
Se os espanhóis se comportaram como bárbaros para dominar o grande império asteca, como se comportavam estes em relação aos seus prisioneiros?
Os astecas praticavam sacrifícios, com requintes de crueldade e depois os devoravam. As pirâmides, então, asseguram os historiadores, cheiravam matadouros porque eram exatamente o que eram. Os prisioneiros, com os corações extirpados do peito, eram empurrados lá do alto.
A cidade do México foi construída sobre a destruída Tenochtitlán (capital do império asteca, fundada em 1325). De tão bonita e organizada essa cidade asteca, Cortês, o conquistador espanhol, chegara a escrever: "Não posso dizer outra coisa senão que na Espanha nada existe de comparável".
Houve, pois, naqueles terrenos, do alto das pirâmides e nas suas imediações, muito sofrimento, sacrifício e sangue derramado. As vibrações que ali se expandem podem conter gritos propagando forças revoltas e inconsoláveis do sofrimento e da morte.
O meu quase imperceptível arrepio, mas indelével, quando da minha visita às pirâmides, não terá sido uma tênue ligação com uma manifestação sutil do mistério da morte e do pavor dos sacrificados?
O arrepio é comum no frio, no susto e no medo. Não me parece que seja veículo para transmitir um instante de inspiração, de elevação.
Por essas contradições é que, até hoje, tenho essa como uma experiência valiosa e inesquecível. Não poderia ser indiferente a ela, imaginando que aquela sensação fosse apenas o efeito da brisa que soprava. Enfim, não posso ignorar, num mero dar de ombros essas passagens que, de certa forma, fortalecem o espírito e temperam a vida.

PS: Alguém insiste: “E se fosse mesmo apenas a brisa “encanada”? Pensei e não vacilei na resposta: “O que mudaria?”

Fotos:
Catedral Metropolitana do México: flicker.com (Google imagens)
www.planetware.com/picture/mexico-teotihuacan (Google imagens)

28/03/2010

MADAME BOVARY E ANA KARENINA, DUAS PERSONAGENS

Explicação

A literatura contém muitas obras em que paixões arrebatadoras eclodem e os personagens com tudo rompem, incluindo os padrões sociais para exatamente viverem num outro estágio de vida, alimentando uma nova experiência de convivência apaixonada, de amor.
(Já me deparei com situações dessas em que o casal apaixonado assume a troca por nova vida com o novo amor. Nos dias de hoje, em qualquer fórum, se desvendados os verdadeiros motivos das separações e divórcios, em muitos essas paixões aparecerão.)
Se as pequenas paixões momentâneas, casuais, uma presença constante são inesquecíveis o que dizer das grandes paixões. Aceito qualquer ressalva sobre esse tema tão humano e tantas vezes guardado a sete chaves no coração de tantos por toda a vida.
Mas, ah! os tempos, naqueles tempos duma sociedade tão conservadora quanto hipócrita que fiscalizava com rigor as atitudes das mulheres, em especial, e suas paixões adúlteras, não aceitas e rejeitadas à execração...
Por isso, proponho-me a analisar duas personagens literárias famosas: “Madame Bovary”, obra de Gustave Flaubert escrito nos idos da metade do século XIX e “Ana Karenina” de Leon Tolstoi, escrito uns vinte e poucos anos depois, ainda no mesmo século.

Madame Bovary

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Ana Karenina

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