20/02/2011

SETE PECADOS CAPITAIS / LUXÚRIA

Explicação:

Quando iniciei esta série, a partir do “pecado da Gula”, fiz referência a duas autoridades cristãs, ao teólogo e monge João Cassiano (370-435) e ao papa Gregório Magno (540-604), que viveram nos primórdios do cristianismo. (1)
São considerados sábios. Os elementos de que me valho para fundamentar as conclusões que agora faço sobre a luxúria, um dos sete pecados capitais – talvez na sua concepção original, um dos mais graves – porque naqueles idos já havia defensores do celibato entre os sacerdotes - foram inicialmente obtidos nos dicionários, o seu significado corrente:

LUXÚRIA:

Dic. Caudas Aulete: “Sensualidade, lascívia, dissolução dos costumes, corrupção”; Dic. Aurélio: os mesmo sinônimos, incluindo “libertinagem”; Dic. Houaiss “interesse incansável por prazeres carnais”.

Pode-se concluir, então, que a luxúria, numa definição mais atual, seriam os “excessos carnais”?
Se sim, tudo em excesso não transborda da racionalidade?
Assim a gula, o desejo descontrolado de se alimentar; a avareza, aquele sentido de reter bens e dinheiro como se pudessem ser transportados além túmulo e a preguiça que se transforma em indolência, apatia.
Pois aqueles religiosos citados não teriam sido moderados em condenar os prazeres sexuais, apenas os excessos, hoje tão comuns que nos assombra no dia-a-dia? A pedofilia, a homossexualidade (nesta crônica me refiro à relação homem-mulher que eu conheço), a pornografia nos seus estágios mais abusados...

Porque, fora da luxúria, há relatos bíblicos de admirável beleza sensual como se constata no capítulo “Cânticos dos cânticos” (capítulo 7):

1 Quão formosos são os teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe! Os contornos das tuas coxas são como jóias, trabalhadas por mãos de artista.

2 O teu umbigo, como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre como monte de trigo, cercado de lírios.

3 Os teus dois seios são como dois filhos gémeos de gazela.

4 O teu pescoço como a torre de marfim; os teus olhos como as piscinas de Hesbom, junto à porta de Bate-Rabim; o teu nariz como torre do Líbano, que olha para Damasco.

5 A tua cabeça sobre ti é como o monte Carmelo, e os cabelos da tua cabeça como a púrpura; o rei está preso dos teus encantos.

6 Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias!

7 A tua estatura é semelhante à palmeira; e os teus seios, os teus seios são semelhantes aos cachos de uvas.

8 Dizia eu: Subirei à palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus seios serão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração como o das maçãs.

9 E a tua boca como o bom vinho para o meu amado, que se bebe suavemente, e faz com que falem até os lábios dos que dormem.

10 Eu sou do meu amado, e ele é para mim.

11 Vem, ó meu amado, saiamos ao campo, passemos as noites nas aldeias.

12 Levantemo-nos de manhã para ir às vinhas, vejamos se florescem as vides, se aparecem as tenras uvas, se já brotam as romãzeiras; ali te darei o meu amor.

13 As mandrágoras exalam o seu perfume, e às nossas portas há todo o género de excelentes frutos, novos e velhos; eu os guardei para ti, ó meu amado!


Com as ressalvas da minha interpretação “poética”, essa declaração mútua de amor no texto transcrito constitui-se numa linda peça de sedução, da realidade entre homem-mulher quando apaixonados e livres.

Alguém pode me explicar o prazer intenso e desejado de um casal que se dá ao amor e ao sexo? Aquela explosão? Que fenômeno é esse? Ele instiga a relação, o encontro dos sexos opostos. Pode significar a felicidade
Mas, e a tragédia?
A luxúria desceria à libertinagem, aos excessos onde a mulher se submete e o homem a submete e se submete. Se esses excessos forem pecado, ambos não escapam.
Na imaginação de Dante Alighieri contida na obra “A Divina Comédia” os luxuriosos no inferno têm o seguinte castigo:

“Logo comecei a ouvir as lamúrias da infernal geena (*): aproximava-me já do lugar em que padecia ferozmente. Era um local privado de toda luz, que rugia como mar assolado por ventos furiosos. O furor da tormenta, nunca apoucado, flagelava eternamente as almas, agitava-as e as espicaçava, sem nunca parar. Quando à beira do abismo as precipitava, ais, choros e lamentos rompiam. A multidão de malditos blasfemava contra Deus. Ouvi dizer que sofriam de modo horrendo os que se dedicavam aos vícios carnais, submetendo a eles o discernimento.”
(...)
“Então, disse: “Mestre, que almas são aquelas que o vendaval castiga enfurecido?
Respondeu Virgílio: “A primeira entre as sombras das quais desejas ter notícias regeu nações. Decretou que a lascívia seria lícita e agradável, a fim de legitimar as torpes práticas nas quais se excedia. (...)”
(2).

Sempre soube que o celibato imposto pela Igreja Católica aos seus bispos, prática que estaria institucionalizada em definitivo e obrigatório pelo Concílio de Trento (1545-1563), se dera por conta de melhor se dedicarem à própria Igreja e à espiritualidade.
Nessa linha de idéias eis as referências contidas em Gálatas (16 -19):

16. Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne.
17. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis.
18. Mas, se sois guiados pelo Espírito não estais debaixo da lei.
19. Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia,


Para atingir este comunhão do Espírito há que contar com grande força sempre, mas muito mais nestes tempos de sexualidade exposta em qualquer meio de comunicação. Por isso valho-me mais uma vez de outra fonte que analisa a abstinência do sexo em relação à espiritualidade e os que a praticam ser estar preparados. De Max Heindel, místico-filósofo no seu “Conceito Rosacruz do Cosmos”:

“Por outro lado, se a pessoa se dedica a pensamentos espirituais a tendência para empregar a força sexual na propagação é mínima, de forma que qualquer parte dela que não se use nesse propósito pode ser transmutada em força espiritual. Por tal razão o iniciado, em certo grau de desenvolvimento, faz o voto de celibato. Não é uma resolução fácil de tomar, nem pode ser feita à ligeira por qualquer pessoa que deseja desenvolver-se espiritualmente. Muitas pessoas ainda imaturas para a vida superior sujeitam-se, ignorantemente, a uma vida ascética. Tais pessoas são tão perigosas à comunidade e a si mesmas quanto o são os maníacos sexuais imbecis.” (3)

O livro de Heindel foi escrito no começo do século passado, quando havia recato e até mesmo a demonização do sexo. Imaginem nestes tempos em que o pêndulo solto sem controle, com violência foi para o lado oposto dos costumes, gerando a sua total erotização.
Tudo está indicando que há um apelo à moderação. Mas, eu não tenho autoridade para nada recomendar (imaginem!) até porque não sei onde ela, a moderação, se situa. Que cada um medite se está no sexo o pecado e nesse caso, qual o seu limite até a luxúria. A luz está apagada.


Referências:

1)“Gula”, 1ª crônica dos “sete pecados capitais”, publicada em 26.12.2010 neste “Temas”;
(2)“Divina Comédia” - Edição em prosa da Coleção L&PM Pocket (2006);
(3)“Conceito Rosacruz do Cosmos” – Max Heindel – Fraternidade Rosacruz (3ª Edição – 1993)

(*) Geena (significado): “Local de suplício eterno, inferno” (Dic. Caudas Aulete)

Fotos:

1. Cena do filme “A um passo da eternidade” (1953) entre Burt Lancaster e Deborah Keer
2. Cena do filme “007 contra o satânico dr. No” (1962) – Ursula Andress

13/02/2011

FRAGMENTOS PATERNOS

















(Esta cônica, registro de memórias tem ligação estreita entre outras, especialmente com “Amarguras e Ternuras contidas” de 22.05.2009)

- Tá aqui outro livro. Você vai gostar. E policial e refinado.
- Mas...
- Dê uma folga nos “bang-bangs”. Afinal, você não conseguiu ler “Os Sertões” do Euclides? Esse aí vai ser fichinha.
Fanático por “bang-bang” naquelas sessões da tarde na televisão, lúcido porque sóbrio, creio que tenha adquirido esse “amor” por esses filmes, após assistir, mais de uma vez, “Os brutos também amam” (“Shane”). Se bem me lembro, uma tarde-noite, enfrentamos o trem da extinta “Santos a Jundiaí” para assistir esse filme no também extinto cine Windsor, na avenida Ipiranga, São Paulo. Chegamos em cima da hora, o cinema estava lotado. Sentamos nos degraus. Deu para ver bem o filme.
A avenida Ipiranga não era tão atribulada e até perigosa como é hoje. Nem por liberdade poética, vejo encantos na esquina da avenida Ipiranga com São João.
Lá se punha o velho na sala, na mesinha que ele mesmo fez, na frente da televisão com os pés postos numa geringonça para esquentá-los naqueles dias mais frios: uma caixa de papelão com uma lâmpada bem instalada sobre ela. O calor da lâmpada era irradiado por uma abertura esquentando seus pés.
Escrevia bem. Gostava de música clásica.
Era exímio marceneiro para objetos pequenos: a escada de 1,5 metro de peroba que durou “uma eternidade” – quando ainda havia peroba - caixas bem feitas nos detalhes –até hoje tenho caixas de documentos e uns recipientes de bambu feitos por ele onde guardo brocas de furadeira.
As inumeráveis carriolinhas que fez para seus netos, meus filhos, os caleidoscópios e, principalmente, tabuleiros de jogo de damas, cujas “pedras”, também de peroba, foram torneadas, pelo que sei, no canivete. E o jogo com dados que os jogadores avançam ou recuam nas casas do tabuleiro segundo os desígnios dos números sorteados.
Tudo no capricho total na sua minioficina, um quartinho no fundo. Ao lado umas bananeiras muito “produtivas”.
Era muito vaidoso com o relógio Rolex que ostentava com orgulho; quando dizia as horas, mencionava até os segundos. Esse relógio está comigo. Há décadas esquecido, há pouco providenciei revisão total, mas ele não vale muito, quer pelo seu modelo simples quer pela sua antiguidade. Além desse relógio, uns poucos livros foram a herança ou o meu quinhão.
No ginasial fui péssimo aluno. Não poucas vezes, minha mãe foi chamada na diretoria do colégio para ouvir as ameaças que representava seu filho para a sociedade.
Embora ele sempre incentivasse que eu estudasse, a verdade é que praticamente tudo o que estudei foi opção minha e pago por mim, inclusive, pelos resquícios do mau aluno de sempre, penei demais para me formar em direito na PUCSP.
Mais tarde, muito menos pela renda e zero de patrimônio, mas talvez pelo "crédito" que teria obtido na minha atividade estudantil e na imprensa na cidade de São Caetano do Sul fui seu avalista em valor importante o que lhe permitiu comprar a sua casa. (Ou por outra, o banco entendesse que com ele o empréstimo seria pago rigorosamente, exigindo avalista apenas para atender aos seus procedimentos).
Já com meu fusca vermelho, num descampado, dei-lhe as primeiras aulas de direção. Muito difícil, mas era ambição maior dele ter um carro e dirigir. Depois de uma dezena de tentativas obteve a carta de habilitação. Até hoje desconfio que o delegado a concedeu por puro dó.
Já bem idoso, então, não foi capaz de dirigir com um mínimo de segurança o seu carrinho. E desistiu.
Muitas vezes, ao entardecer quando passava em sua casa, lá estava minha mãe preparando algum prato que ele gostava, geralmente de carne, e escondia o chocolate dos netos vorazes, a guloseima preferida do velho.
Já começava a apresentar os primeiros sintomas respiratórios pelas décadas em que fumou.
Todas essa lembranças conservo com muito carinho e quão forte fora minha mãe que, como dizia um tio, fora ela a luz do meu pai. E de todos nós.


CARTA DE DESPEDIDA


Em 06 de setembro de 1987
Ilmos. Srs. Diretores da
Cia. Antarctica Paulista
São Paulo
Prezados Senhores:
Faleceu no último dia 4, no Hospital Santa Helena, o Sr. Dario Martins, com pouco mais de 81 anos de idade, meu pai.
Na Antarctica, ele trabalhou por mais de três décadas, de onde se aposentou há cerca de 20 anos.
Em todos esses anos, mais de meio século, essa Cia. sempre esteve presente em sua vida. Amparando-o na condição de empregado quando sofreu a terrível doença do alcoolismo, dando-lhe apoio sempre. Depois, durante todos os anos da aposentadoria com um pequeno, mas significativo auxílio e agora, no fim da vida, no Hospital Santa Helena.
Saibam que meu pai amava muito essa empresa, chamando-a, sempre que passávamos na Presidente Wilson, de “mãe”. Para ele, fora um privilégio ter a Antarctica como motivadora da maior parte de sua vida.
Para quem, como eu, com um conceito próprio sobre o mistério da vida e da morte, que o visitei, só, nos últimos instantes na UTI do Hospital Santa Helena, na cena triste e final de uma existência atribulada, mas essencialmente honesta, sensível e mesmo feliz, não pude conter a emoção pois que houve ali, um momento doce de despedida, com um leve gesto de cabeça de quem, ainda lúcido, reconhecia seu estado crítico, prestes a seguir para um estágio reparador e transcendente.
Esse momento, que se relaciona intimamente com o Hospital Santa Helena, levarei comigo para sempre.
Eis porque escrevo esta a V. Sas. para registrar meu agradecimento, sincero, emocionado, a uma entidade de comprovada grandeza a quem meu pai, ao longo de quase toda sua vida, só soube exaltar.




Foto 1: Esses lírios por muitos anos enfeitaram nosso jardim, quando morávamos em Santo André. É um símbolo daqueles tempos inesquecíveis. Por isso ele ilustra esta crônica porque infelizmente, raro, nunca encontrei bulbos e pior, não os trouxe quando mudamos.
Foto 2: São Caetano do Sul aérea, de minha juventude, onde tanta coisa vivi, fiz acontecer e aconteceu.